É preciso ter muito cuidado com as generalizações pois corremos sempre o risco de elas virem a ser, como tantas vezes acontece, abusivas. Eu sei que não podemos extrapolar a partir de um único caso particular mas, se alguma coisa poderemos concluir do que temos vindo a assistir nesta minúscula partícula que é a nossa comunidade do Vale da Esperança, é o facto de estarmos a observar um pequeno universo que eventualmente até poderá ser representativo daquilo que vai sucedendo na sociedade portuguesa nestes dias tão estranhos e simultaneamente tão intensos que decorrem à nossa volta. Aceitando o pressuposto de nesta simples amostra podermos estar a ver um filme ilustrativo do que, hoje em dia, se vai passando no nosso país, então eu diria que estamos assistindo ao estalar de rupturas mais ou menos profundas no tecido social, cujas implicações, por ora muito longe de sabermos se boas ou más, não só não compreendemos inteiramente, como ainda nem temos como avaliar se algumas nos continuarão ou não a escapar ao entendimento que sejamos capazes de estabelecer. Em alguns aspectos o poder está a cair na rua e em algumas localidades começam a esboçar-se formas de organização colectiva para tratar dos espaços e conveniências públicas e comuns. É o caso das comissões de moradores que vão pululando por aí e cuja moda chegou aqui, através de um grupo de residentes que dinamizou uma série de reuniões e encontros entre vizinhos, com o propósito de analisarem se algo há a fazer para alindar arruamentos e praças, como igualmente as tornar mais acolhedoras e compatíveis para todos e também o de organizar aqueles serviços colectivos, como os da limpeza e dos ajardinamentos, por exemplo, susceptíveis de serem assegurados localmente, sem recurso ao funcionalismo da Junta de Freguesia ou da Câmara Municipal. As pessoas agora manifestam-se e à medida que as semanas e os meses se sucedem, bem mais rápida e facilmente do que eu imaginava, vão perdendo quer os constrangimentos dos receios da révanche dos primeiros dias, quer o acanhamento de expor aos outros os seus pontos de vista. Sabem que não vão presas por falar e começam a tomar como adquirido que têm direito a expressar as suas opiniões e até a apresentarem as suas sugestões para os problemas que a todos dizem respeito. E já me deparei com situações em que a cada cabeça correspondeu a sua sentença, como seria de todo de esperar que acontecesse. Do mesmo modo que as ondas se agigantam em todas as tempestades e, tonelares e ruidosas se abatem sobre as praias e falésias, a agitação da vida colectiva, quando permanente, tende a transbordar de convulsões que podem ter mais ou menos impacto na estabilidade social. Mas tudo parte daí, agora as pessoas manifestam-se, exprimem o que pensam e isso, quer queiramos quer não, abala qualquer sociedade. E a portuguesa está a fracturar-se, neste momento e ninguém sabe o que daí possa vir a resultar. Não é só metaforicamente que ganha validade a observação que as gentes trocaram o interesse pelo futebol pela maior atenção para com a política. Com isso elas transportaram a atitude e defendem as respectivas cores com a mesma convicção e infelizmente com a mesma irracionalidade com que o faziam com os clubes desportivos. Surgiram dezenas de partidos e movimentos políticos e os portugueses repartem-se por seguidismos mais ou menos acríticos e ou mais ou menos radicais, alguns aparentemente inconciliáveis entre si e esperemos que não seja impossível a coexistência entre uns tantos deles. O Manuel é da opinião que tudo isto é normal pois assim foi em todas as revoluções. Ele que tem mais conhecimentos de História que eu, lá saberá das razões porque o diz e com o seu gosto pela Geologia, defende que é o período em que todos os estilhaços materiais provenientes de uma colisão cósmica, por exemplo, com um meteoro, pairam, em amálgama nebulosa, no ar, até que a gravidade se cumpre e os atrai para que de novo assentem pela superfície. Acrescenta que isso acarreta que brevemente todos regressarão ao normal das suas vidas e a sociedade retomará a calma diária de um mundo sem sobressaltos. Tenho a impressão que está redondamente enganado e que aquilo que vamos testemunhando mais se assemelha à progressão de um temporal que, ao invés de ser passageiro, antes prenuncia a sucessão de outros, muito maiores que, ameaçadores, se percebem no horizonte. Estamos aí para ver. E os partidos começam a apoderar-se de âmbitos da sociedade que nada têm a ver com o poder político, como ocorreu na Santa Casa da Misericórdia da Vila, onde o Provedor foi demitido pelos trabalhadores do hospital e, em assembleia, um grupo de associados conseguiu fazer eleger uma nova mesa administrativa só com elementos do partido a que aderiu aquele que substituiu o Presidente da Câmara deposto pela revolução. Razão teve o Gustavo quando se opôs ao grupo de jovens que pretendiam trazer a conflitualidade inter-partidária para a nossa associação, com base no argumento que mais do que se limitar a fazer o trabalho que tem vindo a levar a cabo no domínio da divulgação cultural e até política e cívica, deveria apostar na promoção de ideias e propósitos revolucionários. Foram longas horas de debates que se repetiram por uma boa mão cheia de sessões, cheias de ruído de fundo e com intervenções atabalhoadas a que o calor da noite e a fumarada juntaram o suor dos rostos e dos corpos, no fim dos quais os sócios votaram maioritariamente contra as alterações estatutárias e regulamentares e orgânicas que aqueles extremistas queriam introduzir.
Se eu fosse mais nova, ainda jovem sem responsabilidades familiares, atirar-me-ia à estrada para, in loco, ir escrevendo o diário da revolução que estamos a viver. São ocasiões únicas na História, possibilidades irrepetíveis de uma vida.
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