terça-feira, 29 de outubro de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Dentro de dias cairá mais um calendário e com ele passarão trinta e quatro anos desde que aqui chegámos, jovens sonhadores, imbuídos da vontade de criarmos um mundo, não direi só para nós, mas no qual nos sentíssemos livres e a salvo da loucura que então grassava um pouco por todo o planeta e onde pudéssemos criar os nossos filhos em condições de bem estar e alegria, de segurança e prosperidade que não tivesse que se alicerçar na luta desenfreada pela sobrevivência que nem mesmo hesita diante da possibilidade do esmagamento do semelhante. Quem diria que afinal viríamos a ser capazes de o fazer? Bem lá no fundo, provavelmente ninguém, mas a verdade é que assim aconteceu. Para felicidade de todos os que têm vivido esta aventura, direi eu que, pessoalmente, não tenho dúvidas em afirmar que o tenho sido e de que maneira. Gostaria muito, à semelhança do que sucede com outros companheiros, de ter aqui os meus queridos filhos na partilha, tanto da companhia como deste esforço colectivo que mantém viva e viçosa esta comunidade maravilhosa. Não deixo no entanto de perceber que até isso é boa prova de como os educámos convenientemente, preparando-os para enfrentarem os desafios do quotidiano por meios e capacidades próprias, sabendo que tanto um como o outro são homens de carácter e que vivem segundo os princípios éticos de não prejudicarem o próximo ainda que em causa esteja a prossecução de interesses próprios. E só posso sentir orgulho por estar certa de serem esses os valores que procuram transmitir aos seus filhos e meus netos, como pessoas responsáveis que são e que compreendem ser essa a primeira função da família e a base da sua importância, a transmissão dos laços, dos afectos, das idiossincrasias em que se vão moldar as personalidades e as maneiras de ser dos mais novos. Para depois lhes possibilitarem as condições e oportunidades propícias a que possam escolher os caminhos em que melhor se sintam e revejam e essa é a relevância seguinte do núcleo familiar, embora seja aí que mais precisamente começa a reprodução das injustiças sociais, pois muitíssimas são as famílias que, pelas vicissitudes das suas posições perante o trabalho e, por via disso, na sociedade, vivem muito longe de serem capazes de o conseguir se apenas contarem com os seus recursos particulares. Diga-se com inteira justiça, algo que aqui temos ultrapassado, pois são vários os filhos de operários que para nós trabalham que chegaram às universidades e, tendo concluído os respectivos cursos, acederam a profissões e carreiras que, relativamente aos progenitores, não só os situam em patamares que aqueles sequer poderiam almejar, como, no concreto, se traduzem numa melhoria significativa das condições de vida que a ascensão social acarreta. E se alguns até preferiram permanecer e trabalhar por aqui, a maioria desses vive e labora fora, num caso como médico bastante respeitado da Misericórdia da Vila, noutros casos como engenheiros de indústrias e professores de diferentes níveis e disciplinas diversas e ainda com o recente exemplo de uma rapariga que se prepara para receber o cargo de Juíza, no que será uma das primeiras do país e o de um rapaz que começou a trabalhar como advogado e já tem consultório estabelecido em Lisboa. O facto de terem usufruído de uma boa escolaridade que em muitíssimo pouco terá onerado os bolsos paternos, para além das paralelas ocasiões de contacto e aprendizagem cultural que a actividade para-escolar e a da associação proporcionam aos habitantes desta comunidade e de os seus pais poderem alimentá-los adequadamente e de ainda lhes sobrar rendimento para os miminhos que sempre temperam o bom tempo de uma infância radiosa, com um acompanhamento ao nível da prevenção da doença e de um corpo saudável, estou em crer que tudo isso confluiu para que essas crianças viessem a usufruir das possibilidades de escolherem os trilhos por si desejados. E isso é uma outra vertente que nem mesmo estava presente nos sonhos mais coloridos dessa quimera inicial que nos juntou e aqui nos trouxe. Mas agora que o Artur se reformou, aquilo que me parece é que se iniciou o fim deste primeiro ciclo, pois tudo indica que esta comunidade irá perdurar para além de nós. É, digamos, o nosso melhor prémio, a mais bela recompensa por todos estes anos desta doce e magnífica ventura que temos experimentado neste pequeno pedaço de paraíso. Seja como for, a aposentação daquele companheiro marca o começo dessa passagem de testemunho, uma vez que, no próximo triénio, todos os fundadores da cooperativa se reformarão. Contudo, importa que registe não ser nada que transcenda aquilo que já é uma realidade pois, se por enquanto ainda vão estando presentes no dia a dia laboral, são os filhos, a segunda geração, quem, para todos os efeitos, conduz os destinos da administração dos negócios e da gestão das actividades o que vem sucedendo há um bom par de anos a esta parte. Sendo justo de acrescentar, sem que hajam ou tenham havido descarrilamentos ou tremideiras, pois os resultados continuam francamente positivos e pelo que consta, preparam-se expansões para novas áreas. O Artur é que está radiante por finalmente dispor de todo o tempo para se dedicar às suas pesquisas e recolhas musicais. Diz que daqui a dois anos, quando a Graziela chegar igualmente ao fim da idade activa, irá procurar o Félix para lhe dar conta de tudo o que fez. Será essa a altura em que também eu me retirarei.

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