Era bom de mais para ser verdade, se bem que o que está a acontecer seja algo que seria de esperar. Pessoalmente sempre tive as maiores reservas a respeito do General Spínola, cujas motivações individuais desde a primeira hora me pareceram muito distantes do que se pode adivinhar no programa democratizador do Movimento das Forças Armadas que, não sendo uma unidade monolítica, comporta indivíduos com diferentes opções políticas e sociais que naturalmente têm confrontado pontos de vista e propostas precisamente a partir do que vai prevalecendo a linha orientadora da direcção do movimento que, por um lado, tem limitado os poderes e eventuais iniciativas da Junta de Salvação Nacional e, por outro lado, acaba por lhe impor a contemporização com as correntes que vão dando o tom ao discurso das autoridades militares e o Primeiro-Ministro que, do anterior, transitou para o novo governo provisório, falou inclusivamente de um caminho para o socialismo. Spínola está cheio de tiques e truques cesaristas e possivelmente viu-se como uma espécie de caudilho que seria o melhor garante da evolução social e política sem grandes convulsões. Mas não me parece que isso fosse conciliável com a pluralidade que a democracia pressupõe e acaba por implicar e, pelos vistos à primeira oportunidade, o homem mostra que não está disposto a acatar outro rumo que não seja aquele que ele acha melhor para o país. Seja como for, uma coisa é o que tem sucedido até aqui, as lutas políticas pelo poder, quer entre os partidos que procuram tirar vantagens uns em relação aos outros no seu relacionamento com as figuras castrenses para exercerem maiores influências nas políticas a seguir, quer entre aqueles que, por sua vez, procuram abrir espaço à promoção das matrizes ideológicas com que individualmente simpatizam. Ora isso é uma coisa e não seria nada de mais e tanto menos quanto tivermos em conta que estamos a viver a invulgaridade de um período revolucionário. Aquilo que desta vez se viu já é uma coisa diversa e é aqui que termina o estado de graça em que o novel regime tem vivido e oxalá que isso não se aplique igualmente à paz que tem prevalecido entre nós e que esteve em risco de se perder. A verdade é que a sociedade portuguesa radicalizou-se um pouco mais e pela primeira vez depois de Abril, vi populares na rua empunhando armas e manifestando a vontade de as usar. Ao certo, a larga maioria dos portugueses nem deve ter percebido muito bem o que se passou. Na Vila, as pessoas mais à direita falam de uma inventona; à esquerda, com os comunistas à cabeça, embora seguidos pelos socialistas e, em tal verificação, secundados pelos pequenos grupos mais extremistas, especialmente os que se reclamam do marxismo, falam em tentativa de golpe de estado. Com certeza, ninguém sabe, pelo menos por enquanto. Ele houve entre os espectadores de uma tourada, no Campo Pequeno, na passada quarta-feira, a expressão pública do repúdio por Vasco Gonçalves que foi vaiado à entrada, a par com uma forte demonstração de apoio ao então ainda Presidente, o General António de Spínola. Até aí nada de grave pois creio que isso mais não é que uma decorrência da liberdade de expressão e de escolha. Acontece que terá sido convocada uma manifestação de apoio ao segundo, em Lisboa, no passado dia vinte e oito que, alegadamente, seria o ponto de partida para uma marcha sobre o poder a fim de reforçar os poderes do general do monóculo e colocar um ponto final ao que ele, no seu discurso de demissão, apresentou como forças contrárias aos interesses nacionais. Certo e sabido é que na madrugada desse mesmo dia, militares e civis levantaram uma série de barricadas à volta da capital do império que, inclusivamente, chegaram até aqui, obrigando todos os condutores a pararem e, em acto contínuo, revistando toda e qualquer viatura à procura das armas que se dizia terem como destino as mãos e intenções dos manifestantes para as usarem no dito e alegado assalto ao poder. Sinceramente achei tudo muito estranho e que tenha sido noticiado, não foi encontrado qualquer armamento sequer que permitisse sustentar a tese de que falei e muito menos ainda o arsenal que necessariamente teria que aparecer se os propósitos fossem exactamente aqueles que foram descritos. No entanto, depois de tudo o que ocorreu, a abdicação do General Spínola seria inevitável e com a entrega do cargo ao General Costa Gomes, tudo indica que terá ganho a ala que mais aposta num futuro muito em torno do socialismo, para Portugal. Aqui foi um pandemónio, com um dos líderes da secção que os comunistas decidiram abrir na Vila a acordar toda a gente com morteiros, a fim de reunir os camaradas, nas suas próprias palavras que estivessem dispostos a pegarem em armas para travarem o golpe reaccionário que estaria em curso. E foi na praça do bairro dos trabalhadores que o povo se reuniu e de onde partiu para cortar a estrada nacional, via em que forçosamente terá que passar o trânsito que destes lados pretenda dirigir-se à capital. As mesmas gentes que hoje, apesar de ser Domingo, responderam positivamente ao apelo do Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves para oferecerem um dia de trabalho cívico ao país e por aí andam limpando caminhos e bermas, ou lavando os monumentos da falta de educação daqueles que não percebem que não os deveriam encher com pichagens, por mais acertadas e urgentes que estas sejam. Não posso é deixar de reconhecer que isto representa a fractura irremediável da sociedade portuguesa que opõe aqueles que estão do lado da revolução, àqueles que são apelidados de fascistas e que se afirmam contra e que, a partir daqui, passarão a dar-lhe luta aberta o que não augura nada de bom. Não estou a ver alguém como Spínola a contentar-se com o cantinho de insignificância de uma vida privada de silêncio político. O homem que escreveu um livro em que apresentou uma visão para Portugal e que a si próprio se vê na pele de quem tem uma missão a cumprir, precisamente a de aplicar essa óptica que a seu ver fomentará uma acção redentora, um sujeito destes, com toda a certeza, não quererá remeter-se a um papel de mero espectador. Quer isto dizer que até aqui temos passado pela agitação normal num processo de mudança de regime, especialmente tendo isso partido de um golpe de estado por via da força. A partir de agora, o novo poder saído da revolução de Abril, terá, ele próprio, a oposição feroz de todos aqueles que, de alguma maneira, querem regressar às águas calmas do antigamente. Vamos a ver o que isso vai dar e só faço votos para que não venha a desaguar numa guerra civil. Seria uma tragédia.
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