quinta-feira, 17 de setembro de 2015

A Literatura, o Suicídio e a Cura


por: Risoleta C. Pinto Pedro

A literatura pode ser vista como lenitivo e bálsamo, mas também como  instrumento de compreensão e estudo dos processos psicológicos, nomeadamente os que conduzem ao suicídio e à morte. Ou à redenção e à vida.

O bálsamo encontra-se no refúgio de um livro, no sentimento de segurança que este dá pelo acolhimento, pela alternativa a um mundo que se sente como hostil, pela entrada no universo imaginado e inspirador do poema ou da ficção.

A compreensão dos processos encontra-se na análise do grito de dor dos poetas ou escritores, mais ou menos sincero, mais ou menos fingido, ou ainda sinceramente fingido:
Fernando Pessoa verbaliza-o como ninguém: “Que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente.“

O que distingue o suicídio de muitas outras causas de morte é principalmente a urgência e a falta de esperança. O suicida não quer ou sente que não pode esperar. Quer o alívio já. O ser encontra-se tão desesperado, tanto desacredita da vida, que nem por esse final descanso ele espera. É como se tudo tivesse de depender dele, como se qualquer alívio, ainda que sob a forma de morte, tivesse de ser ele a auto proporcionar-se. Não admira que esteja cansado. É demasiada carga sobre um pobre mortal. Só a vida dá bastante que fazer. Ser-se também senhor da morte já é trabalho para deuses.

O suicida vê-se como uma ilha única num mar hostil. A literatura mostra que o sofrimento, o desespero, o sentimento de sem saída é vivido pela humanidade desde sempre. O cansaço é velho como o ser humano, a rebeldia do coração universal, a impotência é humana, a incapacidade para lidar com isso, antiga e partilhada.
O sentimento de vingança do ser humano em relação a si próprio ou em relação ao mundo em si simbolizado, aparece denunciado neste poema do século XV:

“Coração, já repousavas,
já não tinhas sojeição,
já vivias, já folgavas;
Pois por que te sojugavas
outra vez, meu coração?

Sofre, pois te não sofreste
na vida, que já vivias;
sofre, pois te tu perdeste;
sofre, pois não conheceste
como t'outra vez perdias!

Sofre, pois já livre estavas
e quiseste sojeição;
sofres, pois te não lembravas
das dores de que escapavas,
sofre, sofre, coração!”

Jorge de Aguiar [Séc. XV-XVI]

É a impaciência em relação a si mesmo, a incapacidade para viver a repetição, para re-sentir aquilo que o fez sofrer, a ausência de qualquer tipo de auto-compaixão, a vingança contra si. Que no limite pode assumir a auto-destruição. Uma forma de se vingar da vida e de todos os que com ele coabitaram o mundo e não o salvaram.
Antes, D. Dinis censurara os trovadores provençais por não levarem o amor a sério e por sobreporem o fingimento à sinceridade dado apenas fazerem versos na Primavera, isto é, inspirados pelo exterior. Contrapõe  com a autêntica dor que habita o seu coração, que antecipadamente responsabiliza pela sua morte. Podemos entender esta morte como a disposição de um amante para ir até às últimas consequências do amor que não recusa, apesar da dor, ou uma morte simbólica, a morte do artificialismo e da superficialidade aqui simbolizada pelos provençais. É esta morte que lhe dará vida, visto que ele é um guerreiro, vencedor sobre os floreados poéticos, sacerdote de um culto sério e arriscado que é o amor. Outro nome para vida.

Proençaes soen mui ben trobar
e dizen eles que é con amor;
mais os que troban no tempo da frol
e non en outro, sei eu ben que non
an tan gran coita no seu coraçon
qual m'eu por mha senhor vejo levar

[…]
Ca os que troban e que s'alegrar
van eno tempo que ten a color
a frol consigu', e, tanto que se for
aquel tempo, logu'en trobar razon
non an, non viven [en] qual perdiçon
oj'eu vivo, que pois m'á-de matar.

Já no século XX, 1916, em Paris, o poeta Mário de Sá-Carneiro, posterior suicida,  encena burlescamente a sua morte. Um funeral ridículo, ou uma espécie de vingança de si mesmo. Pos-mortem:

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro.

Mário de Sá Carneiro

A um morto nada se recusa, “ ou a esperança de que a morte traga, finalmente, aquilo de que a vida foi avara: a festa, o amor, a atenção, a satisfação dos mais loucos caprichos. ~

Este poema e o de Jorge de Aguiar (não o de D. Dinis), são expressões de ressentimento em relação a si mesmo ou em relação ao mundo. O ressentimento é o que verdadeiramente mata, é uma corda de enforcado, um veneno, um revólver dentro do ser, uma espécie de canivete suíço auto-suficiente até para a morte. Agindo activa ou passivamente. Rápida ou lentamente.

No poema de Jorge de Aguiar , o poeta recriminava o coração por ser recalcitrante, por não ter aprendido com a dor passada por não deixar de amar.

Ora o coração sabe, melhor do que ninguém, do que precisa. E do que ele precisa, ainda que doa, é de amar. O coração não é um simples cofre ou reservatório de sangue, é um motor de amor.

E aqui entramos na nossa mais remota tradição poética, aquela que igualmente dá a palavra ao homem e à mulher, através das cantigas de amor e de amigo.
Nas de amor: o respeito por um código, como um protocolo, a honra, a palavra.
Nas de amigo a saudade, a espera, a emoção. Assim se completam.

Falo da incontornável tradição cavaleiresca dos séculos XII a XIV, a ordem de cavalaria a que obedeciam os trovadores, aqueles que estão nas fundações dos também designados por Fiéis do Amor.

Como afirma Pedro Martins em O Céu e o Quadrante: “a poesia portuguesa conhece desde a sua génese, uma dimensão iniciática que a vincula à sabedoria.”
António de Macedo refere a mesma ordem dos trovadores, de natureza iniciática e dispondo de linguagem cifrada, que aqueles que não aprofundaram reduzem a mero artifício literário. Ela está cheia de referências ao «Amor cortês», à «Senhora», à «formosa Dama Fulana ou Sicrana».  Mas a realidade não é apenas de ordem sentimental. As «Leis do Amor», rigorosas e bem delineadas, eram verdadeiros graus de Iniciação com, segundo António de Macedo “seus ritos, chaves e limites”:
«O primeiro grau é o de feignaire, hesitante, ou melhor: aspirante; o segundo é o de pregaire, postulante; o terceiro é o de entendeire, auditor; e o quarto é o de drutz, amigo ou iniciado. Este último grau era atingido quando, tendo chegado ao 3º grau, entendeire, o fiel auditor era finalmente brindado com o AMOR DA SENHORA, mediante um beijo que ela lhe dava: o osculum fraternitatis. Depois disto ele tornava-se um drutz, um iniciado, um amigo, um verdadeiro Fiel do Amor, servente incondicional da Domina Lux, Senhora-Luz - e a partir de então ele passava a ter o direito de baptizá-Ia» (Aroux 1854, 461-462).

Ora este é o caminho do um ao três. Pela união com a amada, a criação de algo novo a que se dá um nome novo. A criação do novo que é, simultaneamente, a salvação pelo verbo. A palavra poética.

Sendo o suicídio, no limite, um saudável anseio, pois no fundo o que impulsiona o suicida é a cessação do sofrimento, ou um grito de socorro, logo, algo a que poderíamos chamar o impulso para o bem estar ou a felicidade, o problema não está no propósito, mas no método.

Porque no fundo aquilo por que anseia o suicida é aquilo por que anseia toda a humanidade num universo dividido: o regresso ao Paraíso.

O Paraíso pode ser a infância ou, recuando ainda mais, aquele momento de beatitude da total osmose com a mãe quase Deus da gestação, onde a proteção era praticamente divina, ou, se quiserem, podemos recuar ainda mais, a algo que não sabemos, a tal saudade do que não conhecemos, e que o poeta porta Fernando Pessoa define no poema “Não sei se é sonho se realidade” como:

“Ali, ali,/ a vida é jovem e o amor sorri”

 Mas também ele diz:

“Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.”

Nada nos garante que a morte, e sobretudo a violência auto-imposta da privação da maior das dádivas, traga aquilo a que a alma aspira. Há até, quem acredite que o que acontece é precisamente o oposto, mas não vamos entrar por aí, que não é por isso que aqui estamos.

Ou melhor, como canta o poeta da Mensagem, é preciso “passar além do Bojador” se queremos “passar além da dor”, é preciso percorrer até ao fim o caminho de dor e de dualidade, porque como afirma no poema anteriormente citado:
“é em nós que é tudo”

É a expressão de uma quase omnipotência que não nos separa do mundo, mas mostra o nosso poder interno de destruição. Ou de restauração. Sendo esta construída dentro de nós, mas com o outro, através do poder do amor. Como os poetas iniciados tão bem sabiam, tão bem continuam a saber.

Percebemos assim que a dualidade está em nós e a resolução dela também.
Que o caminho não é o do dilacerado dois recuando para o impossível e inalcançável um, porque do passado histórico, aquele que não volta nunca mais, se é que alguma vez existiu fora da nossa imaginação, mas o da conciliação do aparentemente inconciliável, a ilusória dilaceradora briga, e transformando a luta de Jacb com o anjo no abraço do tango. A transcendência é isto. Não a fuga, mas a dança depois da luta, em que nasce um terceiro elemento a que poderíamos chamar a Esperança, o Espírito Santo, o V Império ou o presente eterno desde sempre em potência dentro de nós. O caminho do 2 ao três, a dualidade que, grávida, cria. Não a que recua.

Ou, como acreditaram os trovadores poetas, os iniciados cavaleiros fiéis do amor, a cura está no amor, morrer por amor é matar em si aquele que quer matar-se e fazer viver aquele que ama como quem diz fiat, ou como quem canta. A palavra poética.
Prossigamos com a poesia:

“Vem, camarada irmão,
Erguer sobre os meus versos o teu canto.”

Miguel Torga (Libertação)

“Sobre os teus versos, só a eternidade.
Pobre é o meu canto.
Sobre os teus versos é que o tempo há-de
erguer as catedrais do nosso espanto.”

António Arnaut

Há nos dois poemas, quer no que serve de epígrafe, quer no poema de António Arnaut, a alusão a dois criadores: “os meus versos” e “o teu canto”, num caso;  “os teus versos” e “o meu canto”, no outro.

No primeiro, o canto ergue-se sobre os versos, no segundo os versos erguem-se sobre o canto. Sobre ambos, a eternidade e as catedrais de espanto.

A eternidade não é a morte, mas a vida. A eternidade é erguida sobre os versos, os “teus”, os versos do poeta, responsáveis pelo espanto de quem os recebe, espanto tornado em catedrais. Assim sendo, a salvação pela poesia: por quem a cria e por quem a recebe. Sendo que quem cria é, também, quem a recebe e aquele que a recebe, ou leitor, é também, de alguma forma um co-criador com o poeta. Como bem se viu no poema com sua epígrafe.

É também deste olhar criador e libertador que fala Pascoaes. E do seu in-verso:
“[…]
Tu gritaste, de susto,
Olhando para a serra:
- Que incêndio! – E eu, a rir,
Disse-te: - É a lua cheia!...
E sorriste também
Do teu engano. A lua
Ergueu a branca fronte,
Acima dos pinhais,
Tão ébria de esplendor,
Tão casta e irmã da tua,
Que eu beijei, sem querer,
Seus raios virginais.
E a lua, para nós,
Os braços estendeu.
Uniu-nos num abraço,
Espiritual, profundo;
E levou-nos assim,
Com ela, até ao céu...
Mas, ai, tu não voltaste
E eu regressei ao mundo.
[…]”

 O Poeta, o alquimista do Amor, esse que não receia beijar a Lua,  não recusou acompanhar a amada, esteve com ela no infernal céu, esse lugar sedutor, mas regressou ao mundo, porque detém a palavra de Amor e poder do beijo que é uma espécie de abraço em forma de sopro, processo iniciático de alta e alva magia que é a palavra poética, transformadora  do ardente incêndio em fresca lua. A Amada não conseguiu, ficou no Céu, um lugar longínquo para onde fogem os que  temem e não vencem o temor da Lua incendiada no Céu. Mas não podemos assegurar que o buscado e mítico Céu não seja, precisamente, esse incêndio. Que se esconde por detrás da Lua.

É verdade que os escritores também se suicidam, e temos alguns casos na nossa literatura, no entanto não é esse seu suicídio que nos move a nós, leitores, mas esse seu outro lugar que é o da palavra, que nunca morre, pois que dá vida a quem lê. O imposto auto-sacrifício é um mistério que não julgamos, apenas analisamos pela compassiva lupa que é a lua ou a palavra poética. Aquela única que os e nos ressuscita dos lugares onde nos matamos. De onde, por ela, nós, trovadores, poetas e leitores iniciados, nos salvamos.

O poema que se segue, de Bocage, faz uma perfeita síntese de como o caminho da dualidade, na sua plena consciência, conduz ao Amor. Que é a Vida. E conclui, por mim, esta comunicação, que melhor fecho não teria.

Amor a Amor Nos Convida
Com dura e branda cadeia,
Com facho activo e suave,
De seus mistérios co'a chave,
Amor entre nós volteia:
Já deprime, já gloreia,
Já dá morte, já dá vida;
E nesta incessante lida,
Que em si traz, que em si contém,
Com o mal, e com o bem,
Amor a amor nos convida. 

Bocage o sábio mestre do paradoxo, onde reúne morte e vida e assim cria, com palavras, o poder que tudo transcende.


P.S.: Texto de conferência da celebração do dia Mundial da Prevenção do Suicídio promovido pelo SOS Voz Amiga, no Fórum Roma, Lisboa, em 10/9/2015.



Sem comentários: