quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Etnografar a Arte de Rua (XIII) Graffitar a Literatura


Graffiti fotografado por Luís Souta, 2015.
Alameda dos Combatentes da Grande Guerra, nº 117, Cascais


«Contento-me com pouco mas desejo muito.»
(Miguel de Cervantes)

Altura é o autor (colectivo) desta porta reconfigurada que o “Muraliza - Festival de Arte Mural, 2015” ofertou aos cascalenses e aos muitos que visitam esta animada vila, cada vez mais turística e menos piscatória. O graffiter presta homenagem à grande obra do castelhano Miguel de Cervantes Saavedra  (1547-1616) Dom Quixote de la Mancha (1605, 1615). Não há quem não conheça esta personagem. Bem menor é o número daqueles que leram este livro monumental (duas partes, 126 capítulos) que marcou o início do romance moderno. Uma nova e excelente edição (de capa dura) com a chancela das Publicações D. Quixote, a celebrar os seus 50 anos, acabou de sair em Portugal; com tradução de Miguel Serras Pereira, que nos faculta um exaustivo “Glossário e Notas”, e três textos introdutórios de Maria Fernanda de Abreu “Nos 400 anos do Quixote”; um total de 933 páginas por apenas 10€ !

O tempo não desgastou esta peculiar figura que Cervantes descreve deste jeito: «rasava os cinquenta anos. Era de compleição rija, seco de carnes, enxuto de rosto, grande madrugador e amigo da caça. (…) este sobredito fidalgo, nos passos em que estava ocioso – que eram os mais do ano –, era dado a ler livros de cavalaria, com tanto apego e gosto, que esqueceu quase por inteiro o exercício da caça e também a administração de sua fazenda; (…) e assim, do pouco dormir e do muito ler, se lhe secou o cérebro de maneira que acabou por perder o juízo.» (pp. 83, 84).

graffiti mostra-nos Dom Quixote montado no seu Rocinante, tendo, por trás, o moinho de vento alvo das suas alucinações guerreiras. O cavaleiro de la Mancha, que deu sentido ao ditado «quem muito lê, treslê», aparece-nos sem rosto. Altura não quis retratar o “medieval” cavaleiro porque, creio eu, muitos de nós, em algum momento das nossas vidas, acabámos por ter atitudes e comportamentos, classificados de “quixotescos”.

O mito de Dom Quixote tem resistido ao tempo. E alimentado comparações. As adaptações desta obra de Cervantes têm sido muitas, mais ao menos talhadas aos diversos contextos histórico-geográficos. Há uma que recordo com muito gosto. Trata-se da peça encenada por Joaquim Benite (1949-2012), a partir do texto, de 1733, de António José da Silva – A vida do grande Dom Quixote de la Mancha e do gordo Sancho Pança. Este trabalho do Grupo de Teatro de Campolide (fundado em 1971) viria a ganhar o Prémio da Crítica para o melhor espectáculo de teatro amador. O texto de «o Judeu» e a encenação de Benite funcionaram como poderosas “armas” em dois períodos históricos – Inquisição e ditadura de Salazar-Caetano. Duas épocas com muito em comum. Dom Quixote, com a sua desmedida fantasia, e Sancho Pança, com o seu pragmatismo de pés bem assentes na terra, proporcionaram-me uma lufada de liberdade e esperança quando assisti a essa peça, em 1973, no GDP (Grupo Dramático Povoense), uma colectividade da, então operária, Póvoa de Santa Iria. E logo em Abril, do ano seguinte, começava uma nova cena… a democrática.


Luís Souta


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