sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Folhas à Solta*


   A Comédia Latina  (excerto )                                                 por  Agostinho da Silva  


[...]"À medida, porém, que a civilização evolui, sempre no sentido dum maior poderio técnico, a noção de sagrado vai-se atenuando; todos os actos da vida passam a ser civis, desligando-se de qualquer ideia de sobrenatural; o mundo aparece, não como um conjunto de sinais de Deus, que o homem venera, teme ou respeita, e de que participa pelas formas sacramentais, mas um domínio laico, como uma propriedade a seu inteiro dispor e em que ele exerce todos os direitos de usar, gozar e abusar, com que se define a noção clássica de propriedade.


O homem vive, desde então, não para adorar o que vê, como outrora, não para fazer de todos os seus actos uma tentativa de reconquistar o paraíso perdido, mas para se aproveitar do que existe, para dominar, para se afastar cada vez mais da inocência da Idade do Ouro, com o risco de nunca poder reencontrar o caminho; [...] cada vez mais o homem se tem posto e considerado mais no mundo como o dono do mundo, com o direito de destruir os animais e as plantas, de escravizar os irmãos homens, de transformar a vida inteira nalguma coisa que não tem outro fim senão o de sustentar a sua vida material.


A vida tornou-se laica e tornou-se feroz, implacável e, o que é pior ainda, sem sentido nenhum que eleve a vida além da vida. É uma série de momentos em que se produz para se consumir e se consome para se poder produzir de novo. As relações do finito com o infinito, da parte com o todo parecem, em instantes mais críticos, correr o risco de se perder por completo; o acto gracioso da oferta aos seres fraternos e aos seres superiores, a gratuitidade de viver, desaparecem rapidamente de um mundo que se dessacraliza.


Costuma-se dizer que o progresso técnico superou o progresso moral; mas o que há na realidade é que o progresso técnico se fez à custa do fundo moral da Humanidade, do seu fundo divino; e as grandes épocas de crise são exactamente aquelas em que o progresso técnico é o mais elevado possível e a consciência moral uma luz mínima que parece a cada momento ir apagar-se de todo no fragor das tempestades económicas e políticas.


[...] e todo o esforço dos grandes pensadores, dos grandes artistas, dos grandes cientistas, dos grandes chefes religiosos, tem sido exactamente o de impedir que a centelha do sentimento do sagrado se apague de todo neste mundo.


[...] temos hoje à nossa disposição os meios técnicos de dominar a fome e a miséria e de dar ao homem uma liberdade sem limites para exprimir a sua verdadeira natureza; [...] só a fé no homem, nas possibilidades divinas do homem, nos pode levar de novo à Idade do Ouro, tal como a representaram os poetas: tempo de fraternidade e de amor, sem angústia e sem dramas, tempo de contemplação e de absorção em Deus, tempo de acção mental, a mais verdadeira e a mais eficaz de todas as acções."

Agostinho da Silva, A Comédia Latina , in Estudos sobre Cultura Clássica, Âncora Editora, Lisboa, Março de 2002 (publicado pela 1ª vez em 1946, Brasil) 


* Folhas à Solta, Boletim da Associação Agostinho da Silva, nº62, Julho/Agosto 2015


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