quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Etnografar a Arte de Rua (XIV) Graffitar a Literatura



Graffiti fotografado por Luís Souta, 2015.
Estrada da Boca do Inferno (entre o CCC e o MCCG), Cascais


«Dói-me a vida aos poucos.»
(carta a Mário de Sá Carneiro, 1915)

De Fernando Pessoa temos obra vasta e não definitiva pois daquele “baú sem fundo” não cessam de ser resgatadas pérolas literárias; nelas, uns perdem-se em leituras de descodificação árdua, outros sacam citações que repetem até à exaustão – «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce» «falta cumprir-se Portugal!»…

Foi uma [P]essoa peculiar, enigmática, complexa, «a cada página mudando de atitude, de ideologia, de poética, de biografia» (Fernando Cabral Martins, 2006). No Senhor Henri (2003), escreveu Gonçalo M. Tavares: «se um homem misturar absinto com a realidade fica com a realidade melhor…» Talvez fosse isso o que o poeta procurava naquele tempo de frequentes paragens no Martinho da Arcada: o álcool alimentava uma escrita criativa e torrencial que desenvolvia (e com que profundidade!) ideias sobre a vida, as gentes e o país. Afogou-se (cedo) no absinto… para mal dele e de todos nós.

A sua figura, nas escassas fotos que nos deixou, foi recriada por outros artistas. Um deles, o pintor Costa Pinheiro (1932-2015), falecido no passado dia 9 de Outubro, em Munique, dedicou-lhe uma série, iniciada em 1976. Tive a grata oportunidade de ver alguns desses quadros na exposição “Pessoa… intemporal” que esteve patente na Galeria de Arte Convento Espírito Santo, em Loulé, de 22 Novembro a 27 de Dezembro 2008. Este pintor que também optou pela emigração (muitos anos na Alemanha) merece uma homenagem nacional: uma grande exposição na qual teremos seguramente a oportunidade de revisitar Fernando Pessoa que «ocupa uma posição relevante na obra do artista».

writting que vos trago este mês (dádiva do Muraliza à vila de Cascais) é mais uma das múltiplas representações iconográficas do poeta; desta vez, de costas, em posição mais surrealista que ortodoxa. Pode ser visto nas imediações do Museu Condes de Castro Guimarães. Depreende-se que Belém, o artista de rua, fez uma escolha criteriosa do local para o seu graff. Este Museu assinalou os 125 do nascimento de Fernando Pessoa (1888-1935), no âmbito da “Semana do Município 2013”, com a exposição “Gabinete Fernando Pessoa” em que recordava a candidatura do poeta ao cargo de «Conservador-bibliotecário», concurso publicitado em anúncio n’ O Século de 01/09/1932. Uns versos de “Os Colombos”, incluído no único livro em português publicado em vida do poeta – Mensagem (1934) –, pode sintetizar o então sucedido:

«Outros haverão de ter
O que houvemos de perder.» 

Essa foi, com certeza, uma das “dores” da vida (breve) do poeta. Foi preterido no lugar! E para a instituição municipal, tal agravo foi mancha que nunca se apagou, pelo contrário, acentuou-se à medida que crescia a popularidade e a unanimidade em torno do escritor ímpar. Não há forma de “reparar” tal ignomínia que, infelizmente, não foi caso único no campo literário português.

Luís Souta


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