terça-feira, 20 de abril de 2010

HÁ PINTASSILGOS NO MEU QUINTAL
II


A timidez da sombra da arcada paralela à piscina, trepada de heras a partir dos canteiros em redor de um dos pilares.

-Mas voltando atrás, àquilo que eu estava a dizer. Eu acho que não interessa o que o possa ter levado a escrever coisa que seguramente terá partido de um impulso interior aliás, como geralmente sucede nestas situações.
Aquilo que eu defendo é que a partir de uma determinada altura que pessoalmente não saberei precisar, pelo menos aqui e agora, apesar de me parecer que não deve andar muito longe desse mesmo ano de mil novecentos e catorze, de alguma maneira ele deve ter percebido que haviam algumas inquietações que eram as que mais lhe ocupavam o espírito e até seriam, com certeza, aquelas que mais o interessariam, mas ele deve ter percebido isso e então terá decidido que uma boa maneira de tratar essas preocupações seria dar voz a várias pessoas que interpretassem diversas perspectivas, mesmo que em conflito entre elas e foi isso que abriu a porta para os vários heterónimos, especialmente os três mais importantes ou, se quiseres, os mais famosos. Até deve ser notado que ele entendia o indivíduo como uma multiplicidade de eus…
-Sim, ele escreveu isso. E até defendia que sendo o dever do indivíduo cumprir-se, isso implicaria o dar voz a essas diversas manifestações do ser.
-Pois, mas no “Livro do Desassossego”, o Bernardo Soares volta a colocá-las.
Neste sentido, esses tais primeiros textos de que falaste seriam, no contexto da tal obra pensada, como eu sugeri, esses primeiros textos seriam uma espécie de trabalho preambular, se é que é possível falar assim neste caso concreto.
-E como é que conjugarias aí um indivíduo como o Rafael Baldaia que escrevia cartas astrológicas e revelava uma visão… Nem sei como definir, esotérica será o termo? Ora bem, como é que conjugarias isso com um sujeito como o Rafael Baldaia?
-Cartas astrológicas e não só.
-Pois, há até aquele texto da serpente, não é? Aparentemente um texto enigmático.
-Pois, como é que eu conjugaria isso… É como tu disseste, uma espécie de texto esotérico, quase diria iniciático; não é nesse sentido que fazes a pergunta?
-É.



-Pois bem, eu conjugo isso precisamente a partir desse pressuposto que ele tinha de o Ser ser múltiplo e de achar que era dever de cada um o dar cumprimento, quer dizer, dar expressão, deixar que isso acontecesse, deixar que cada diferente manifestação do Ser tivesse visibilidade, se expressasse. Ele concebia o indivíduo precisamente nessa variedade, na complexidade dessa variedade. Ele não concebia a pessoa como sujeito de um percurso unilinear. Esses, para ele, se quisermos usar uma expressão dos nossos dias, mas já antiga, esses seriam a gentinha. A realização de cada um seria o dar vulto a essa multiplicidade contida dentro de si. Nesta medida e tirando as consequências desse seu ponto de vista, ele tomou para si o imperativo de deixar que esses diversos eus que continha dentro de si se materializassem através do que pretendia escrever. Eu não sei se se poderia aqui falar até de diferentes personalidades mas acho que não. Mas o que interessa é que ele pôs em prática aquilo que pensava, isto é, procurou e conseguiu dar voz a esses diversos seres que tinham vida dentro de si.
Então eu diria que o Rafael Baldaia se tratou de um outro eco do problema central de que falei. Mesmo perante a própria abordagem astrológica, não podemos esquecer que ele tinha uma vertente esotérica que me parece não ser desprezável mas que ele deixou que se expressasse nos seus textos justamente por ter o propósito de dar voz a diversas perspectivas, a diversos pontos de vista que, na sua maneira de ver, pelo entendimento que ele fazia das coisas, seriam diferentes maneiras de tratar os problemas que julgava valerem a pena de serem considerados. Não sei se me estou a fazer entender.
-Mas ainda não conseguiste convencer-me. Pelo menos até ao momento.
-Mas pelo menos concordas que há essa tal confluência das diferentes perspectivas do problema central do sentido do ser. Quer dizer, pelo menos admites que isso acontece.
-Posso concordar com isso. Não vejo qualquer impeditivo para tanto. Mas ainda assim, há o problema da portugalidade, se quisermos até do nacionalismo…
-No qual aquela inquietação metafísica se encaixa, pois os portugueses seriam precisamente um povo que estaria destinado a cumprir o destino do homem, perdoe-se-me a redundância. Ora se ele achava que o ser se devia cumprir na sua multiplicidade e se ele tinha consciência de o conseguir fazer, ele ser educado na cultura e na língua portuguesa –mesmo dando de barato que ele era, na realidade, bilingue- conseguia-o naturalmente por isso mesmo. Daí à generalização não seria preciso muito e a verdade é que ele via os portugueses como aqueles que poderiam levar o Homem a cumprir-se.
-A questão do quinto império.
-Sim.
-Mas é uma boa resposta, tenho que admitir.
-É, claro que é. E já reparaste num pormenor que embora nada tenha a ver com a escrita, propriamente dita, funcionou como uma peça que faltava para podermos sustentar esta minha ideia de um propósito consciente de criar uma obra?
-A que te referes?
-Repara que o homem dedicou o melhor das suas energias a escrever os seus trabalhos. É quase como se ele tivesse vivido só para isso. É precisamente nesse aspecto que eu falei na ousadia dele em pretender criar uma obra e diga-se com toda a justiça que o conseguiu fazer, mesmo apesar de ter morrido razoavelmente novo.

(continua)

2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Estou a gostar dos Pintassilgos! Não no sentido em que gostava deles quando era criança...
rsrsrs

Razoavelmente novo? Direi que ninguém é suficientemente velho para morrer! Eu, pelo menos, irei morrer irrazoalvemente novo!
rsrsrs

"Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada."

Acho fabuloso alguém conseguir tornar interessante uma série de personalidades, considerando a dificuldade que temos em considerar aceitável (mesmo para os amigos!), uma só personalidade.
hehehe

Igualmente fabuloso, alguém efabular sobre essa circunstância e prender-nos, como um pintassilgo apanhado na rede...
:(

"Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é."

Isto disse o Poeta, porque a outra disse que "estar vivo é o contrário de estar morto" (ou seria ao contrário?)
hehehe

As tuas palavras têm visgo...
:)
Grande abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Viva companheiro,

Os pintassilgos, por enquanto, lá vão pardalando, mas tão só para que a sinfonia se forme, à medida que formos dando o ouvido à melodia. Esperemos que encante, porque é para isso que sempre vamos vadiando pelas florestas mágicas onde ainda palpita a tranquilidade de podermos viajar por dentro, mas esperemos também que inquiete que é precisamente o que apetece fazer quando de lá regressamos a este mundo pardacento em que se vai transformando o mundo corrente. E como não temos mais nada para atirar às montras desses quotidianos postiços, vai daí e... Pintassilgada com eles que é o que povo precisa -e não é por estar a pensar na mestria do Hitchcok que os lançamos.
Esperemos assim que a passarada vendavalize que é para tanto que tem as asas.

Vamos ver...

Aquele abraço,

Luís