segunda-feira, 26 de abril de 2010

HÁ PINTASSILGOS NO MEU QUINTAL
III

-Vocês desculpem, mas como devem perceber eu não pude deixar de escutar a vossa conversa que me deixou cheio de interesse, tenho que dizer e é de tal maneira assim que eu não resisto a intrometer-me para dizer que acho bastante pertinente o ponto de vista do seu amigo quando ele fala da ousadia do poeta em querer criar uma obra. Devo confessar que nunca tinha visto o Pessoa dessa perspectiva mas, com toda a sinceridade, acho-a muito engraçada e sinto-me um tanto ou quanto tentado a concordar plenamente com ela.
-Bem, daquilo que eu conheço da obra e das poucas referências biográficas de que tenho conhecimento é isso que eu acho que tudo leva a crer. Modéstia à parte, é essa a minha convicção, embora saiba que não se pode dizer que seja um estudo muito aturado do problema. Eu nem mesmo sou perito na matéria. É o meu ponto de vista, tão simples como isso.
-Sem dúvida alguma. Se conjugarmos a vida que ele levou com a dimensão e a profundidade do trabalho que elaborou, ai é muito plausível concluir que inclusivamente ele acabou por escolher a vida celibatária, digamos assim…
-Solitária, será melhor dizer. Celibatária também pode querer dizer castidade e pessoalmente não saberei dizer se se pode falar disso em termos de facto.
-Seja. A vida solitária que ele acabou por escolher seria a única que seria compatível e portanto a única que seria possível para quem realmente pretendesse elaborar uma obra como aquela que ele, de facto, elaborou. Por outras palavras ou dito de outra maneira se considerarmos que ele efectivamente teve a intenção de produzir, de escrever uma obra literária, então percebe-se a opção por permanecer solteiro e, se virmos bem, isso até está de acordo com um outro facto que nenhum de vocês referiu e, se me permitem, foi a sua eterna condição de viver apenas com e de trabalhos precários, digamos assim, o que, manifestamente para mim, se tratou de uma escolha, pois o homem, se quisesse ou se tivesse querido que é melhor assim, com certeza que ele teria a inteligência suficiente para desempenhar uma profissão e conseguir com isso um sustento normal e regular. Como creio que devem saber, a verdade é que o Pessoa sempre viveu de tarefas precárias…
-Até é sabido que muitas vezes chegou ao ponto de ter que pedir dinheiro emprestado aos amigos tanto para comer como para pagar a renda da casa.
-Bem, tenho que admitir que no que se refere a isso que diz da relação entre a preferência pela vida solitária e a intenção de criar uma obra, há certas parcelas de textos, creio mesmo que em poemas, em que ele explicitamente fala na pequenez de uma vida vulgar de uma família normal e da incompatibilidade que isso representa com a intencionalidade de cumprir as potencialidades mais elevadas do ser. Até mesmo se considerarmos as biografias de outros artistas, por exemplo pintores, mas também até ao nível dos cientistas, creio que tu saberás isso até melhor que eu, mas se nós virmos a vida de muitos artistas ou de cientistas, aquilo que verificamos muitas vezes é que eles acabavam por não serem compatíveis com essa tal vida familiar normal. O Picasso, por exemplo, não admitia que o interrompessem quando estava a pintar e que se comportava como o centro do universo em que tudo tinha que se submeter à lógica dos ditames da sua veia criadora. O Einstein… Divorciou-se e deixou dois filhos ao encargo da mãe que fora sua colega de curso e era tão boa física quanto ele.
-Nesse aspecto uma honrosa excepção foi o Darwin que soube compatibilizar o seu trabalho com o equilíbrio de uma família numerosa e feliz se bem que as circunstâncias de que partiu fossem francamente favoráveis. Ele era filho da burguesia culta da época vitoriana, isso é um bom ponto de partida, mas não deixa de ser por isso uma honrosa excepção a esse individualismo –nem sei se lhe pode chamar assim- esse individualismo de que falas.
-E foi isso de que o Pessoa também se apercebeu e por isso o ter optado por essa tal vida solitária, essa vida de solteiro. Mas tenho que admitir que sim, isso seria uma boa pista para podermos entender que ele, pelo menos a partir de um certo momento, ganhou consciência e formulou a intenção de criar uma obra literária, se não nos moldes, no mínimo em que falou disso.
-E foi essa a sua grande ousadia.





-Sim, terá sido como dizes. Com efeito até houve aquele episódio da Ofélia.
-Que deve dizer-se em abono da verdade, até nem sabemos se não terá sido mais uma das suas invenções.
-Achas?
-É bem possível. Sabes que no Fernando, esses pormenores da vida quotidiana podem muito bem terem-se misturado com a ficção. Afinal lá está a história do poeta fingidor que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.
-Mas ao que parece terá existido mesmo alguém. Ofélia até pode ter sido um nome inventado, mas tudo indica que terá existido mesmo alguma mulher, uma Ofélia, se quisermos.
-O que eu ia a dizer é que esse episódio da Ofélia revela que ele poderia ter escolhido uma vida de casamento e o que é certo é que não o fez. Não me custa muito a acreditar que ele possa ter reflectido sobre isso e friamente ter chegado à conclusão de que não tinha quaisqueres condições para seguir um caminho desses.
-A começar pelo facto de não ter uns míseros cinco tostões para mandar cantar um cego, que era o que realmente poderia retratar a sua situação.
-Mas lá está aquilo que disse de ele se ter contentado com uma existência feita com base em trabalhos precários. O homem vivia de escrever cartas comerciais e fazer traduções de correspondência com empresas estrangeiras. Com toda a certeza que se tivesse ambicionado mais o teria conseguido. Ele era um homem inteligente e atenção que era uma pessoa com estudos superiores, não era propriamente dito um pobre diabo sem a menor competência para fazer qualquer coisa mais rentável. Optou por esse estilo de vida porque de certeza terá percebido que, apesar de tudo, essa seria uma maneira, se calhar dentro das que estariam ao seu alcance, a melhor que encontrou pata ter tempo e espaço mental para pensar e escrever a obra que produziu. Acontece que não estou muito bem a ver um homem preocupado em ganhar o sustento para os filhos e em criar uma família e ao mesmo tempo ter toda a disponibilidade para produzir tudo aquilo que ele deixou escrito. Tenham em consideração que ele até nem durou assim tantos anos como isso. Mesmo para os padrões da média de idades da época, eu acho que se pode dizer que ele morreu novo. Caramba, tinha quarenta e seis anos quando se foi, não é assim?
-Isso é verdade e ele tinha perfeita consciência que mal ganhava para se sustentar, quanto mais para ainda ter outras pessoas a seu encargo. É bom lembrar que para os bons costumes de então, as mulheres de uma certa classe permaneciam em casa, não trabalhavam e isto para sequer considerarmos outras despesas, como eram os casos das criadas que certas famílias costumavam ter.
-Pois é tudo isso que faz parte dessa ousadia que é o que mais me impressiona. Vendo bem, o homem pura e simplesmente decidiu levar uma vida de poeta. Ele não decidiu ser apenas poeta, ele foi mais longe, decidiu viver como tal e, para que essa vida fizesse sentido, como não podia ser de outra maneira, ele decidiu que da mesma deveria resultar uma obra completa e que necessariamente tivesse vulto, pelo menos algum vulto, na história da literatura. Vê lá se não te parece que há alguma razão naquilo que digo.
-És capaz de ter razão, sim senhor. Pessoalmente começo a estar de acordo contigo. E não é por acaso que tem vindo a ser considerado uma pena muitíssimo singular, até no domínio da literatura mundial. Quer dizer, especialmente a esse nível da literatura mundial.
-A começar logo por aí, pela coerência global da obra. Mas isso, sobretudo pela questão da heteronímia.
-Eu não tenho a mais leve ideia do que possa ser a literatura mundial que certamente ignoro na sua vastíssima maioria, mas tanto quanto sei, se não for o único será um dos muitíssimos poucos poetas que inventaram heterónimos…
-Eu não conheço nenhum outro caso que a esse nível se lhe possa comparar.
-E provavelmente ainda menos algum outro terá juntado a isso a vontade de criar com eles uma unidade que perfizesse e que no caso dele perfaz, de facto, uma obra literária…
(CONTINUA)

6 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Espero que ao menos os pintassilgos apareçam, já que a Ofélia está a desaparecer numa nuvem de heteronimia...
rsrsrs

Abraço,
António

luis santos disse...

Uma boa reflexão essa do Pessoa ter-se cumprido como poeta, contra ser casado. Ou, por outras palavras, mais do que ser poeta ser poema. Ou, mais do que ser um só, simplesmente, ser muitos embora o que ele quisesse mesmo era ser todos. O nada que é tudo, pois claro.

Obrigado também pela música que tem sido de um extremo bom gosto.

Luís F. de A. Gomes disse...

Continuaremos pois a escutar o concerto do Colónia que foi, para meu gosto, excelente e vamos ouvi-lo até ao fim, com as palmas e tudo.

E foi assim companheiro, o homem foi mesmo um poeta, no sentido grego do termo, ele viveu como tal e isso implicaria, de facto, a menos que fosse pateta, a elaboração de uma obra literária, quer dizer, só para isto faria sentido viver como um poeta e é aí que está a dificuldade. Como conjugar isso com uma vida familiar razoável? Eis, neste modo de vida em que vivemos, um problema de sempre. E a solução nunca é fácil e quando é conseguida, pelo menos tanto quanto me é dado ver, estamos normalmente perante casos de sorte, felizmente, não tenho dúvidas em acrescentar.

Pois fico muito satisfeito agora por ele ter sido dado a tomar a opção que tomou e mesmo se esta lhe levou uns quantos bagacitos a mais para o fígado, mas lá está, esse é o nosso egoísmo de leitores que se deliciam com a poética e não só que ele nos deixou.
Para mim e não tenho nem por um lado a pretensão de conhecer o todo da sua obra e muito menos, por outro, de ter um vasto conhecimento da literatura mundial, portanto pelo menos avaliando pelos escassos conhecimentos que possa ter sobre esse domínio da cultura humana universal, diria que para mim é um dos grandes monumentos da literatura mundial de todos os tempos, está no panteão dos maiores, dos mais significativos e representativos do que se escreveu nas mais variadas línguas ao longo dos séculos. A "Chuva Oblíqua", por exemplo, será sentida como bela enquanto houver a nossa espécie de sapiens sapiens; atrevo-me a dizer isto e outros exemplos poderia acrescentar.
E isto sem embargo de não ter nada a ver com a mundivisão em que deu forma a todo esse trabalho e ainda menos concordar com a maior parte dos pressupostos da mesma, mas isso é uma questão de liberdade de pensamento e nunca nada alguém tem a ver com ela e seria uma simples cretinice dela fazer uma referência para avaliar uma obra literária, do Pessoa ou de quem que fosse.
Quem quer que queira fazer qualquer trabalho original no âmbito da literatura em língua portuguesa, não tem como escapar a pelo menos escutar as palavras do nosso Fernando, nosso porque meu e teu, de qualquer, nós portugueses que foi como tal que ele se expressou, mas ainda mais nosso porque de qualquer humano e nessa dimensão de todo o mundo. Ouvindo Pessoa, até um bosquímano será levado a pensar no que está no interior da sua consciência.

É o nosso mais ilustre desconhecido e isso é uma pena. Esperemos que esta conversa possa contribuir para despertar a curiosidade sobre a obra do poeta e pensador que foi o Fernando Pessoa. Se assim for com um único Leitor, darei os meus esforços por saldados e bastar-me-à para me satisfazer com o resultado.

Até lá, aquele abraço
velho companheiro

Luís F. de A. Gomes disse...

Meu querido primo,

O que é isso de atirar o olho à...
Ofélia alheia?!

Aquele abraço,
isto é que está aqui uma roda, também tu, velho companheiro

Luís

luis disse...

Aqui vai mais uma achega para manter viva a chama da obra do poeta e que também me ficou gravada na memória: "Ser tudo de todas as maneiras possíveis", o que, de certo jeito, justifica tanta heteronímia, o que vai dar no mesmo de ser o tal "nada"... Claro que o homem para lá de ser um medium assumido, segundo nos consta, inspirado nas ideias de Hippolyte Rivail (...), também terá andado muito pela filosofia oriental - Bhramanismo, Taoismo, Budismos (talvez tenha sido aqui que encontrou essa ideia de "nada"). Mas não ficou por aí e, ao que parece, O Livro da Serpente trás uma síntese pessoana que o distingue de tudo o resto, autor incontornável da filosofia lusitana, ocidental, mundial, mas ao que se sabe, nunca tenha sido um filósofo no sentido académico do termo.
E fazendo jus à nossa Revistinha aqui deixo um poema da Mensagem (sobre a alma portuguesa), o único livro que o poeta publicou em vida, só para não ter de ir agora ao sótão...

D. Dinis

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.

Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.

Aquele Abraço.

Luís F. de A. Gomes disse...

"(...) autor incontornável da filosofia (...)" (...) "(...) nunca tenha sido um filósofo no sentido académico do termo."

Essa é a dimensão maior da obra do homem e é o que o coloca no Olimpo dos maiores vultos da literatura mundial; ele escreveu filosofia com a sua poesia. Salvaguardo sempre a irrelevância de estarmos ou não de acordo com o seu pensamento e, claro, sem estar a fazer a apologia do que quer que seja. Mas sobre isto não me adianto pois, se a memória não me engana, no próximo post, creio que o recém-chegado à conversa falará precisamente disso. Prefiro que seja(m) ele(s) a di9zer.
Ainda assim, sobre este aspecto, não resisto a lembrar o que li a uma Senhora de um outro blogue –Restolhando- a respeito da universalidade do seu pensamento por via da abrangência das ideias que expressou na sua poesia. Esta troca de palavras sucedeu depois de ter completado e revisto o “Há Pintassilgos…”, embora reconheça que não desdenharia mesmo nada incorporá-la na sequência de ideias que aí se apresentam. Sustenta a Josefa Faias, assim é o seu nome, uma das razões por que o Fernando é tão entendido é o facto de ter expressado sentimentos, sensações, ideias, visões em que muitas pessoas se podem rever. É uma ideia elegante, digo eu, na minha modesta opinião. E atrevo-me a acrescentar que tal decorreu precisamente do facto de ele ter justamente conseguido expressar essa tal reflexão filosófica sobre o Ser, o âmago da nossa humanidade e é aí que reside a sua grandeza literária. Depois há toda uma obra que é vasta e multifacetada e que está aí para que nos possamos deleitar com ela e a partir dela pensarmos no ser que somos, coisa que em todos os tempos a humanidade fará, mesmo que volte a ter que fazer a guerra com os paus e as pedras dos seus primórdios. E por isso Fernando Pessoa está para o futuro com um Esquilo está para o presente e o futuro também pois os universais sempre terão o entendimento de todos os tempos.
Noutros países, depois das teses na Universidade, dos laicos estudos mais ou menos profundos e das mil e uma citações, um monumento como o Pessoa, isto é, uma peça do património cultural –da Humanidade, não podemos esquecer disso- como ele, seria também há muito um direito comercial.

E vamos indo que a propósito desta nossa conversa e daquilo que escreveste e acrescentaste ao que no se vai dizendo no “Há Pintassilgos…”, tive uma nova ideia e vai daí uma homenagem ao Largo da Graça, o original que antecipou os tempos e que foi ideia tua.
À semelhança do que então fizemos ou, para ser mais exacto, ao que íamos fazendo de uns fascículos para os outros, se bem te recordas, quando terminar o texto, acrescentarei um último post com o conjunto dos comentários que forem aparecendo ao longo da história.
Eu até tinha decidido que no último post, e para que ficasse completo, publicaria imediatamente antes um outro em que apresentaria a bibliografia deste trabalho que existe como parte do mesmo no texto original.
Mas agora decidi que depois do post em que se lerá a palavra fim, a combinação com o post da bibliografia será o conjunto de comentários que aqui surjam. É isso que vou fazer e estou a escrever isto como o faria numa nota pessoal, para que não me esquecesse. Dessa forma terminará esta minha colaboração neste blogue –sem prejuízo de que possam haver outras que, de qualquer forma, não conto vir a fazer sem que os pintassilgos batam a asa.

E pronto, com esta decisão termino e deixo aquele abraço

Luís