terça-feira, 13 de abril de 2010

HÁ PINTASSILGOS NO MEU QUINTAL




por

Jasmin D'Água







Para a

Anabela de Sousa Diogo,

pelas conversas de que mergulhei

nesta aventura de querer escrever uma obra literária.







I






A transparência do azul de uma piscina tremente, pela refracção de rasgos amarelados, serpenteando, no fundo. Pairando, o zumbido da quietude.

-Sabes o que é que mais me impressiona nele?
(…)
-A ousadia.
-A ousadia?
-Exactamente. A ousadia.
-Como assim? A ousadia em que sentido?
-No sentido em que ele quis fazer uma obra e fê-lo.
-E achas isso uma ousadia?
-Acho, na medida em que ele teve a intuição de uma determinada problemática, teve consciência de que a poderia tratar de alguma maneira, quer dizer, com certeza que percebeu ou sentiu que poderia dizer alguma coisa a esse respeito, sentiu que tinha um ponto de vista próprio e concebeu uma maneira de abordar e expressar uma tal temática que implicou que ele fosse capaz de construir uma série de trabalhos literários, não tão simples de fazer como tudo isso e ainda mais incertos quanto ao seu desfecho e que no conjunto se teriam que materializar numa verdadeira obra literária, por sinal, significativamente vasta e cheia de complexidade.
Ora temos de convir que isso é uma ousadia de todo o tamanho. Não achas o mesmo?
-É, nesse sentido é uma grande ousadia. Seja como for, estás mesmo convencido que houve esse propósito explícito de produzir, quer dizer, criar uma obra?
-Sim, estou convencido disso.
-Expressei-me mal. O que eu queria dizer era um propósito intencional. Parece-te que houve mesmo esse objectivo intencionalmente definido de criar uma obra?
-Sim. Acho que foi isso mesmo que aconteceu. Considerando todo o trabalho dele que, devo dizer, não tenho a veleidade de pretender que conheço na íntegra, mas considerando o todo que eu conheço do trabalho dele, volto a dizer que estou mesmo convencido de que foi isso que aconteceu.
-Isso não será uma interpretação muito ousada? Compreendes que, para ser assim, toda a produção que ele elaborou e que abrange áreas tão pouco relacionadas como a astrologia… Sabes que ele próprio chegou a criar horóscopos e a escrever sobre isso.
-Sim.
-Ou as questões metafísicas de um sentido para a história de Portugal. Para ser como dizes, esses diversos níveis teriam de alguma forma de estarem de acordo uns com os outros. A menos que obra tivesse sido, logo de início, imaginada como uma soma, digamos assim, de trabalhos independentes entre si, mas aí dificilmente conseguiríamos ver algum sentido nas tuas palavras.
-Mas é precisamente isso que aconteceu ou, pelo menos, é precisamente disso que eu estou convencido.
-O quê?
-De alguma maneira, esses diferentes níveis, como dizes, estão de acordo uns com os outros. É possível encontrar o que os liga e percebe-se que é precisamente isso que nos permite agrupar toda a sua criação numa obra literária.
-Sou toda ouvidos.









-Bem, eu não digo que desde os primeiros textos que ele tenha escrito que logo aí ele tenha pensado, lhe tenha ocorrido a ideia de criar uma obra literária para falar de um assunto determinado. Não é isso que eu quis dizer.
-E não foi isso que eu pensei, é claro.
-Não interessa o que o possa ter levado a escrever as primeiras coisas.
-Pois, mas não vejo muito bem como é que os primeiros poemas, os primeiros textos, por exemplo os anteriores a mil novecentos e dez que ele publicou em revistas, não vejo como é que isso se poderia enquadrar na pretensão de construir uma obra que presumo tenha a ver com a construção dos heterónimos.
-No entanto, olha que em alguns casos já lá está o germe daquilo que viria a ser o fundamental, o cerne, o ponto central, digamos assim, das preocupações filosóficas que a poética dele encerra, a questão do ser, da dimensão do ser, o destino do ser de se cumprir para além do imediato da simples vida material, olha lá bem que isso já transparece na “Hora Absurda.”
-Sim, isso é verdade, recordo-me desse poema que é anterior à explosão da heteronímia.
-Estás a referir-te àquela célebre tarde em que ele escreveu de rajada “O Guardador de Rebanhos” e qualquer coisa como umas três dezenas de outros poemas…
-Foi o que ele escreveu, se a memória não me atraiçoa, numa carta. Mas não sei dizer a quem a escreveu. Aconteceu em mil novecentos e catorze, o ano da primeira grande guerra mundial. Foi aí que ele criou o Alberto Caeiro.
-Escreveu em pé, sobre uma cómoda… Sabes que eu às vezes penso que isso foi invenção dele?
-O quê? O ter escrito todos esses poemas do modo como descreveu que o fez?
-Sim, às vezes acho que isso se tratou de mera invenção dele. Penso até que isso é uma das peças do puzzle que me leva a pensar no tal desiderato conscientemente assumido de criar uma obra literária com princípio, meio e fim, com cabeça tronco e membros, salvo seja a expressão.
-O poeta é um fingidor, não é?
-Tal e qual, como ele escreveu e tendo o propósito de fazer uma obra teve igualmente o cuidado de lhe dar o enquadramento de pontos de começo. Acho que isso faz todo o sentido, não te parece? Seja como for, num artigo a que ele deu o título de “Notas Íntimas” e que publicou com vinte anos de idade, ele escreveu que para contribuir para a melhoria de Portugal, sentia nele uma infinidade de projectos, acho que falava de mil que, para serem realizados por um só homem exigiriam uma força de vontade que ele próprio admitia não ter.
(…)


(continua)

2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

As imagens que retiro dos pensamentos traduzidos em diálogo vão enriquecer o arquivo "As Minhas Imagens", que o meu cérebro vai guardando...

E ainda não apareceram os pintassilgos...
:)
Abraço,
António

luis santos disse...

Será um prazer acompanhar a riquíssima prosa do Luís em deambulações à volta do Pessoa. A música do Cage está bem ao nível da prosa e do prosado. Bem escolhida. Obrigado Jasmim D'Água.