Quarta-feira, 7 de Abril de 2010
Eu sei, Jackson Brown. Eu sei que te acomodas nessa crença moderna, tão antiga quanto o medo da morte, chamada de reencarnação, e que estás embrenhado nas mais excessivas teses new age para consolidares o teu desejo de acreditar, fazeres acreditar e dares consolação às fragilidades do peito.
Num tempo como é este que atravessamos, onde se descrê de tudo o que não é rentável, nem prático, nem descartável; num tempo em que a morte é uma derrota que se esconde e uma dor que ninguém chora, é bom que acredites no difícil, no improvável, no incerto, no não pragmático. É bom que desenhes a arco-íris a tua imortalidade, esconjures o teu medo e tanjas o teu sonho como se fora harpa, mas tem cuidado, não esqueças que acreditar não é saber.
Não te assustes, Jackson Brown, eu não vou diminuir a tua esperança nem poluir o teu sonho. Ao fim e ao cabo, eu também aceito a hipótese reencarnacionista, embora com um jeito outro, um jeito muito pessoal. Tu não sabes e por isso te digo: sou um homem de fé e, por esta razão, pouco dado a crenças. Escrevi um dia que a crença é a alienação do entendimento, serve aos homens desprovidos de fé para chamar às obstinações vontade, aos desejos convicção, ao medo atávico fé e às superstições entendimento.
Julgo que não se perde nada, antes pelo contrário, em submeter as crenças à lógica das unhas: se arranham limam-se, quando crescem aparam-se. Envernizá-las não é bom, impedir-lhes a respiração seca-as, desvitaliza-as; deixá-las crescer demasiado torna-as quebradiças e é anti-higiénico.
Tudo à nossa volta se abre como um livro, pedindo aos nossos olhos o favor duma leitura atenta. Em cada manhã, sem que nada façamos para o merecer, há um novo dia, debaixo sempre do mesmo sol milenar. E um novo tu debaixo do mesmo eu. E isto é reencarnação. De sete em sete anos nada te sobra em carne de quanto tiveste antes, mas continuas tu, perante ti e perante os que te reconhecem. E isto é reencarnação, a reencarnação da memória, que é o elo de ligação entre o ontem e o hoje. Mas a memória é uma coisa tão frágil que se faz da imponderabilidade de recordar e de esquecer. É por isso que temo – por ti e por mim – que o Jackson a quem o tempo enruga a face e a ampulheta conta os dias num fluxo de areia há-de passar um dia o rio que a todos lava a memória, e aí, não mais Jackson, só a recordação a esvair-se pouco a pouco no coração de alguns. Nostalgia para os que te amaram, satisfação e remorso para os que te odiaram, esquecimento saudável para todos.
A todos nós, personagens dum enredo imenso, onde muito presumimos e pouco entendemos, cabe nascer e morrer sem qualquer «encore», que isto é a vida. Dir-me-ás: «está bem, mas isso é o corpo, o animal, o bicho da terra, não a alma».
Que alma, amigo? Se a gente enquanto carne não tem alma, a alma é que nos tem e empurra?
Não é a rosa que tem a roseira, esta é que dá rosas, primeiro em botão, depois em resplendor, que logo murcha. O perfume exalado? Vai no vento. Vai no vento. A eternidade da rosa faz-se de haver roseiras.
Enquanto nos identificarmos com o efémero, com o precário, com o provisório, com o mortal, nada temos nem nada merecemos. Nem a alma. Dado que nos identificamos pela dor e pela morte, somos a identidade que nos ensinaram a ter. Por isso, meu amigo, se quiseres ser co-autor do enredo deste lado da vida, esquece o nome que te deram, símbolo da tua mortalidade e da sujeição ao papel que te coube no palco das precariedades; ganha o direito a um novo nome, verdadeiro e definitivo. Grava-o numa pedra branca e realiza a alma. Nessa altura, talvez não possa tratar-te como te venho tratando, mas creio que estarás legitimado para falar de reencarnação com o desprendimento e a distância de quem venceu o tempo e já não precisa de esgrimir qualquer crença para esconjurar o medo.
Eu sei e tu sabes que a alma nos quer com amor ardente, mas a gente anda por aí perdida, querendo coisas excessivas e desnecessárias que nos roubam o tempo e nos deixam exaustos. É por isso que não correspondem ao amor profundo que a alma nos tem.
É por isso que morremos, e reencarnar é ainda morrer, por paradoxal que pareça.
Abdul Cadre
in, http://khalad.blogs.sapo.pt
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