A geometria de ângulos rectos de uma libélula que se imobilizou na antecâmara de uma queda, sem pré-aviso, até à tangente de que saiu uma circungiração de lupa. Da mola, os ziguezagues da continuidade de uma busca que só a ela diz respeito.
-Mas se me permite, quero aqui chamar-lhes a atenção para um outro aspecto. É que não será apenas por isso que a sua obra poética ganha uma enorme singularidade -e eu aqui arrisco-me mesmo a acrescentar a importância- não será só por isso que a sua obra adquire uma enorme singularidade não só ao nível aqui do burgo o que apesar de todo o provincianismo que por essa altura dominava o nosso país e até o universo das letras, mas até no plano mundial.
-Está a referir-se a quê?
-Eu estou a referir-me àquilo que podemos designar como a sua dimensão de poeta filósofo.
-Sim, sim, podemos dizer que ele acabou por estabelecer um pensamento metafísico sobre o Ser. Isso é mesmo uma constante nos heterónimos, mas também está muito presente na poesia que deixou assinada em nome próprio. Nós podemos falar do Pessoa nesse sentido de um poeta filósofo ou então de um filósofo que escolheu a poesia como a sua principal forma de expressão. Mas eu acho que se tratou mais de um caso de um poeta filósofo.
-Sem dúvida.
-E tu estás a ver como isso acaba igualmente por confluir para aquilo que defendi quanto à intencionalidade de construir uma obra literária? Consegues ver isso?
-Sim, já disse que sou levada a concordar contigo. Se virmos a coisa por esse prisma, foi, de facto, uma grande ousadia. Contudo, deixa que te diga que não me parece que seja isso que maior destaque merece naquela obra.
-Aliás, nem isso teve propriamente dito a ver com o conteúdo da mesma que, esse sim, é o que verdadeiramente nos deve interessar, não será assim?
-Sim, claro.
-Ora bem… E nesse sentido, isso que o senhor diz de ele ter feito filosofia isto é, o facto de na poesia dele ele ter conseguido elaborar um discurso metafísico sobre o Ser, o destino, as potencialidades do Ser, é precisamente isso que em conjunto com a construção heteronímica –salvo seja a expressão- é justamente isso que mais vinca a singularidade da sua obra e, sobretudo, aquilo que mais vai contribuir para lhe dar uma merecida relevância até ao patamar da literatura universal e de primeiríssimo plano, não tenho a menor dúvida sobre isso.
-Estou a entender onde queres chegar. Afinal isso é que é o conteúdo da obra…
-Naturalmente.
-Claro. Isso é evidente. Mas deves reparar que eu não falei que isso fosse, digamos assim, uma característica da sua obra. Aliás, por quem somos? Isso nem faria qualquer sentido; vendo bem, seria o equivalente a dizermos que um elemento exterior a um objecto seria a sua característica base. Num certo sentido, chega mesmo a lembrar um pouco aquela senhora muito perspicaz que estava a pensar a respeito do que significaria um determinado objecto na pintura que estava então a apreciar, sem dar conta que se estava a referir a um dos vasos da decoração da sala.
-“Este sim, este é um Picasso”, “não minha senhora, isso é um espelho.”
-Sim, tens razão, tens toda a razão. Não é preciso para nada toda essa ironia.
-Claro! Eu disse apenas que isso era o que mais me impressionou no homem, toda essa ousadia. Agora quanto àquilo que possa merecer destaque na sua obra, aí sou levado a concordar contigo e isto mesmo independentemente daquilo que depois possamos dizer a esse mesmo respeito.
-Que queres dizer com isso?
-Quero dizer que independentemente de podermos discutir as ideias que possam estar explícitas ou implícitas naquilo que escreveu e de nessa discussão concordarmos ou discordarmos das mesmas ou muito simplesmente de as acharmos mais ou menos inéditas ou inovadoras ou não, independentemente de tudo isso, a verdade é que não podemos deixar de concordar que no conjunto da sua obra, mesmo se nos restringirmos apenas à sua vertente poética, nesse conjunto ele desenvolveu e apresentou um discurso filosófico.
-Absolutamente de acordo com isso.
-Que até aplica na análise paralela que fez da História de Portugal e do papel de Portugal na História, salvo seja o trocadilho, pois não era essa a intenção.
-Sim, sim, sim, sim… Tal e qual. Com o que faz a sua leitura da História de Portugal e o que precisamente leva a que se trate de uma determinada maneira de ver que é, ela própria, construída a partir de uma concepção filosófica particular.
-Bem vistas as coisas, nem sei se não se poderia dizer que ele elaborou um certo sistema filosófico.
-Olhe lá bem que essa sua afirmação não andará muito longe da verdade.
-Sim, não tenhamos dúvidas. Num certo sentido sim. Sem querer estar a aborrecê-los, contaria até há uma coisa curiosa que se passou comigo.
-Partilha. Partilha.
-Não aborrece nada, certamente que não aborrecerá mesmo nada. Força.
(continua)
1 comentário:
D. Fernando
Infante de Portugal
Deu-me Deus o seu gládio porque eu faça
A sua santa guerra.
Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
Às horas em que um vento frio passa
Por sobre a fria terra.
Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer grandeza são seu nome
Dentro em mim a vibrar.
E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.
(In, Mensagem.)
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