sexta-feira, 7 de maio de 2010

O VELHO QUE FAZIA CESTOS


O Homem que Fazia Cestos
Desenho Tinta da China sobre papel 32x24cm
Autor António Tapadinhas

Num dia igual a outros, dirigia-me para casa e, ao fazer a rotunda da Moita, olhei naturalmente para o terreno baldio que continua a existir, paredes-meias com a catedral de consumo ali implantada. E reparei nela.
Estava junto às cinzas das inúmeras fogueiras acesas durante o Inverno, no que me pareceu uma posição tranquila de descanso, indiferente a quem passava, um tímido raio do sol da manhã a acariciá-la.
Passados uns dias, não sei se muitos, porque à medida que envelheço, os dias ficam pequenos para fazer as coisas importantes que fui adiando, voltei a vê-la.
Passava, lentamente, em frente da taberna, sem olhar para nenhum lado, os olhos, melhor, todos os sentidos agarrados às pedras da calçada. Pareceu-me mais magra e suja.
Atravessou a rua com o seu passinho miúdo, não olhou sequer para dentro do quartel da GNR, seguiu em frente, fez a curva que a levou à ponte sobre o rio da Moita, deteve-se durante alguns segundos e continuou a caminhada até ao local onde, pela primeira vez, a tinha visto sem companhia.
Confesso que a sua imagem esguia, o seu andar algo incerto, ficaram gravados no meu espírito, traduzindo uma sensação amarga de esquecimento e abandono.
Passados mais alguns dias, voltei a encontrá-la. Estava sentada junto às palmeiras do largo da praça. Pareceu-me ainda mais magra, dando a sensação que só a pele segurava o seu frágil esqueleto. Mas estava vigilante: procurava com o olhar alguém que nunca mais aparecia. Quando se voltou para mim, nos seus olhos vi todo o desespero do mundo.
Esse olhar atingiu-me como se tivesse disparado um dardo que mais do que atingir o coração, me abriu a cabeça, numa súbita compreensão do drama.
"Morreu, ou está internado no hospital, ou, ainda pior, no asilo, esse arquivo de mortos adiados. Estará preso?"
Se morreu, só Deus pode ressuscitá-lo.
Senhor Doutor, senhor Guarda, senhor Juiz: "Soltem-no!".
Esse homem não é um vadio. Nem pode ser um criminoso: tem tanto amor para dar. Eu sei que veste roupas andrajosas, está sujo, cheira mal, a suor e a vinho. Mas não pedia esmola: vendia o produto do seu trabalho. Estou pronto a testemunhá-lo. Comprei-lhe muitos cestos de cana que tenho em casa, como prova do que afirmo.
Apreciei, algumas vezes, nas manhãs frias de Inverno, ele junto da fogueira, perto da barraca onde dormia, a cortar e a alisar as canas que utilizava no fabrico dos seus cestos, com os quais, julgava eu, conquistava a sua independência, o seu direito de viver em liberdade.
Posso testemunhar, também, senhor Doutor, senhor Guarda, senhor Juiz, que não sei se ele comia restos ou não, o que sei é que para a sua companheira, comprava o que de melhor havia no mercado. Foi ele que me pediu, à porta do supermercado:
-" A mim não me deixam entrar. Tem aqui cinco euros. Por favor, compre duas latas de Pedigree para a minha cadela."
Ouviram, senhores Médicos, Juízes, Guardas: Soltem-no!
Senhores da Liga dos Direitos dos Animais: a cadela ainda lá estava ontem, à espera. Recusa-se a comer.
Apressem-se! Temos pouco tempo para os salvar!

Texto de António Tapadinhas

9 comentários:

Luís F. de A. Gomes disse...

E foi esta a humanidade que o Steinbeck cantou, não pelo fascínio infantil perante o exótico, nestes casos das vidas vadias de vagabundos e sem abrigo, antes pelo respeito pelas afirmações da escolha de uma vida, o primado da liberdade individual de quem “(…) não pedia esmola: vendia o produto do seu trabalho.”

Profundo este teu texto que nos leva a pensar o que disse e porque a partir daí poderíamos ser levados a desenvolver ideias sobre um mundo em que vivemos e em que assistimos ao esmagamento dos velhos modos de vida em que estas profissões e actividades não estavam no limbo da marginalidade, antes faziam parte dos tecidos sociais mas, se este aspecto pode ser entendido na dinâmica própria dos ritmos produtivos e das necessidades vitais das populações e, nessa medida visto como natural, já o mesmo não acontece com o esmagamento das pessoas, de tantas pessoas que esse mesmo mundo em que vivemos acarreta na voracidade diária em que acaba por se constituir a procura do ter, com a agravante do cada vez mais.
No plano das ideias, no âmbito da procura de um discurso alternativo em relação aos valores em que se sustenta esta nossa maneira de viver e que necessariamente terá que anteceder o desejo da procura de outros modos de vida, nesse âmbito de criarmos suportes de ideias para a afirmação de outras expressões culturais, há todo um caminho a abrir e por isso toda uma constelação de reflexões e conversas a fazer para que se vão formando as ilhas de que um dia resultará o arquipélago de uma sociedade mais harmoniosa e humana, onde quem vende o produto do seu trabalho em barracas não tem que morar –a menos que escolha de livre vontade- e nesse sentido, estes teus amigos, na sua dimensão de heróis de Steinbeck, se assim ficará bem dizer, são tocantes pontos de referência que nos convidam a pensar no que de mais profundo pode haver no sentido da vida que um homem pode escolher.

Mas é curioso que já tinha sentido o mesmo naquela pintura da árvore, salvo erro, a última que apresentaste neste espaço. É que as tuas palavras mais uma vez são redundantes em relação à imagem e isto no duplo bom sentido tanto de umas como das outras, pois quaisqueres delas valem por si e têm todo o sentido independentemente de estarmos apenas perante as letras ou as cores. Seja no deleite do ler, seja no agrado do ver, somos levados a pensar as mesmas coisas, e neste caso particular do retrato de um homem, olhando para ele com atenção, vemos que o seu rosto vincado não é propriamente o do olhar de quem trilha orgulhosamente o rumo que quis dar à vida, mas está bem marcado que se trata da expressão serena, tranquila, podemos mesmo dizer resignada, de quem não aceita vergar-se perante a má sorte com que a agitação das ondas dos dias lhe salpicaram a vida. Expressaste-lhe a alma que para mim é a consciência que trazemos dentro de nós.

Resta-me deixar aquele abraço, companheiro

luis santos disse...

Então e as etiquetas?

A.Tapadinhas disse...

Os teus comentários são um estudo profundo da nossa sociedade. Sinto orgulho por ser eu a despoletar tais considerações. Sempre aprendemos mais sobre o mundo em que vivemos...

Também te quero dizer, que pouco tempo depois da publicação desta crónica, uma funcionária do lar de idosos, contou-me que o senhor que eu referia, sempre que o internavam, arranjava maneira de se escapar. Jurava ter assuntos muito urgentes a tratar. Nunca disse quais. A senhora ficou muito comovida quando entendeu o que ele queria: ir tratar da cadela!

Aquele abraço,
António

A.Tapadinhas disse...

Luis Santos: Já tem! Talvez deva levar outra que eu escolherei mais tarde.

Abraço,
António

luis santos disse...

Este teu texto fez-me pensar no Salvador das Dores, um sem abrigo de Alhos Vedros, o irmão do "Chalana". Gente boa.

Um outro me vem agora à ideia, o António Figueiredo, mais conhecido pelo "Canina", o neto da Albertina da Saca que nasceu e cresceu ali nas barracas "atrás de campo".
Sempre por eles senti amizade, mas este teu texto avivou-me a sua presença. Alguma coisa mudou...

O "Estudo..." só por si não chega, há também que agir.

Abraço.

MJC disse...

Gosto muito.

Uma seta burilada a indicar o caminho para outras latitudes no universo interior de cada um.

Tenho estado "fora" (e continuo)já que Feira do Livro de Lisboa impõe um horário muito prolongado (até 16 de Maio é assim), mas, venho aqui espreitar e pronto, maravilho-me.

abraços.

croca

A.Tapadinhas disse...

Luis Santos: Fico sempre com dúvidas se merece a pena fazer algumas das coisas que faço, seja na escrita ou mesmo na pintura.

Depois, lembro-me de Pessoa...
(tudo vale a pena!) e alguns dos amigos que perdem o seu tempo comigo, e penso:
"O mundo pode não mudar, mas pior não fica!"

E lembro-me da teoria do caos: um bater de asas duma borboleta pode causar um furacão do outro lado do mundo!

Abraço,
António

A.Tapadinhas disse...

MJC: Cada um de nós tem um caderno de encargos que julga ser impossível cumprir e nos obriga a fazer opções, algumas delas, dolorosas...

A pouco e pouco, vamos tornando esse caderno cada vez mais preenchido...

Sei por experiência própria! Já tive esse caderno cheio, que foi apagado por um enfarte de miocárdio...

Sinto que, mais uma vez, estou a preenchê-lo... Nunca mais aprendemos! Deve ser por isso que existe esse provérbio: Aprender até morrer! :(

Podes crer: as tuas palavras são muito reconfortantes!

Abraço,
António

luis santos disse...

António, por favor, deixa de preencher esse caderno de encargos!