terça-feira, 25 de maio de 2010

HÁ PINTASSILGOS NO MEU QUINTAL
VII

A canícula traduzida no cigarrar do mato. No imediato, o sobrepor das vozes da conversa.

-Something in me was born before the stars.
-Eu também conheço esse poema:

Something in me was born before the stars
And saw the sun begin from far away.
Our yellow, local day on is wont jars,
For it hath communed with an absolute day.

Lindo não é? Mas esse problema do Ser intemporal que existe para lá de tudo, é precisamente essa a vertente filosófica da sua poesia em que, se atentarmos com profundidade, estão lá colocados os grandes problemas da Filosofia. O que é o homem? A vida do homem tem sentido? Qual o sentido da vida do homem? Qual o papel do homem? Quais os seus limites? São, desde sempre, problemas recorrentes no pensamento de pendor filosófico.
-“O abismo é o muro que tenho, ser eu não tem tamanho.”
-Isso é do próprio Pessoa.
-Sim, da poesia que ele assinou com o seu próprio nome.
-Mas esse pequenino poema fala justamente da infinitude do ser. O homem contem em si a potencialidade do infinito. Ora não é isto um pensamento brilhante?
(…)
-Com certeza, apesar, deve dizer-se, de não deixar de ser uma ideia comum para a época.
-Como assim?
-Então, isso era basicamente aquilo que sustentava o Nietzsche. Aliás, foi em função disso que ele desenvolveu a ideia do super-homem no Zaratrusta.
-Super-homem que o Pessoa refere, ipsis verbis, precisamente no “Ultimatum”.
-E precisamente partindo desses mesmos pressupostos da infinitude do ser. O homem que em si contem o infinito em potência deverá, precisamente por isso, transformar-se num super-homem que ultrapasse a vulgaridade que caracteriza o homem perdido no quotidiano da sobrevivência. Ora isso é, mais palavra menos palavra, o que está contido em Nietzsche na sequência das ideias que apresentou a respeito da orfandade do homem perante a morte de Deus. Seria o super-homem capaz, ele próprio, de se agigantar às qualidades dos deuses e com isso conseguir suplantar a sua condição em que de modo algum se cumpre no seu destino último. Quer-me parecer que isto não é nada que possamos dizer que é novo em Pessoa. Digamos que não seria por aí que poderíamos distinguir o poeta que, na verdade, foi um grande poeta e merece até uma distinção maior que, pelo menos por enquanto e aqui nesta terra onde nasceu, ainda não tem.
-Mesmo assim não deixa de ser relevante que ele tenha conseguido expressar esses pensamentos através da poesia, servindo-se da poesia para os tratar.
-Sim, isso é verdade e provavelmente, quanto a esse aspecto, até nem deve ter sido assim tão vulgar como tudo isso.
-Bem, vamos lá e sejamos rigorosos. O que até nem tem que ter necessariamente ou apenas a ver com essa consequência niilista de o homem se ver a si próprio na obrigatoriedade de se transformar num super-homem .
-O que é que queres dizer com isso?
-Quero dizer que isso da infinitude do ser, do homem conter em potência o Infinito dentro de si, isso nada tem de especial. E mais; sejamos justos que isso muito menos tem que derivar na ou a partir da ideia do super-homem.
-Como?
-Não acha que está um tanto ou quanto a menosprezar o pensamento do homem?
-Não, não. Repare que para mim isso é evidente e nem é preciso ir muito longe. Se quer que lhe diga, isso limita-se a decorrer da educação, só isso.
-Isso o quê?
-Explique-nos lá isso.



-É simples, muito simples mesmo. Partindo do princípio que todos somos Seus filhos, então todos teremos que ter necessariamente o Infinito em potência dentro de nós, não? O que isso possa querer significar já será outra coisa. Seja lá como for e voltando à questão do super-homem, é verdade que isso revela que do ponto de vista das ideias que expressou, o Fernando Pessoa nada mais foi que um homem do seu tempo, não me parece que se possa dizer que foi além do tempo em que viveu. Todas as suas ideias estão bem enquadradas e partem de referências, quer filosóficas, quer estéticas, que então circulavam pela intelectualidade europeia. Europeia e não só, mas para o caso, com maior destaque para a elite pensante europeia.
-Pois era isso que eu estava a dizer. Até mesmo a proposta que ele faz do super-homem para Portugal mais não é que uma simples repetição das ideias que na época vieram a confluir nas ideologias dos regimes totalitários europeus da primeira metade do século vinte, especialmente os de direita que também os houve de sinal contrário, mas regimes esses que, no mesmo sentido, todos eles desprezaram a sociedade moderna…
-Os futuristas faziam a apologia da violência e da guerra e o Marineti que escreveu o manifesto futurista…
-Desculpa interromper-te, mas lá está aquela questão do Pessoa ser um homem do seu tempo. Esse manifesto teve ecos em muitos outros sítios, até na Rússia, onde o Malinovski se dizia poeta futurista, mas também aqui entre nós. Por exemplo, o “Manifesto Anti-Dantas” do Almada foi mais ou menos tirado desse texto do italiano e o próprio “Ultimatum” vem também nessa sequência; apesar de ter sido escrito bem mais tarde, acho que o original do Marineti data para aí de mil novecentos e dez e o texto do Almada de mil novecentos e dezassete, isto se a memória não me atraiçoa, apesar de ser mais tardio, o “Ultimatum” tem todas as características desses textos panfletários. Mas isto foi um aparte. Continua lá.
-Ia só acrescentar que o Marineti acabou inclusivamente por aderir ao fascismo de Mussolini.
-Pois, mas esse também fez a apologia da máquina e da velocidade o que são aquisições manifestamente modernas, não é assim?
-No entanto, não deixa de ser verdade que essas propostas do super-homem para Portugal estão muito bem enquadradas nas ideias da época e em muitas das que conduziram a essas ideologias totalitárias. Os nazis, por exemplo usaram-no no mesmo sentido em que o Fernando Pessoa o opõe ao cristianismo.
-Ressalve-se que sem com isso estar alguém aqui a pretender que o Pessoa fosse um simpatizante de tal causa ou regime. Isso que fique bem claro.
-Obviamente. Aliás, não podemos esquecer que ele até teve escreveu aquele poema a gozar com o Salazar na sequência daquela questão da maçonaria e aí ele revelou grande apego pela liberdade em geral e pelas liberdades de pensamento e expressão, em particular. Isso é um facto. Contudo, o que eu estava a dizer é que foi com base nesse pressuposto do super-homem que ele concebia a possibilidade de se pôr em prática a ideia do quinto império a que não deixou de dedicar uma boa dose das suas energias.
-Depois dos Vieiras, do padre António e do Afonso, talvez até tenha sido o Pessoa aquele que mais se dedicou a essa ideia do quinto império, não?

(continua)

2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Sabes o que mais me espantou quando comecei a descobrir Pessoa?
???
Foi a sua capacidade de traduzir em palavras que até eu entendia (!) os grandes problemas filosóficos do Ser intemporal.

Não precisava, como acontecia com outros autores, de ler dez vezes o texto, de procurar dicionários e interpretações de especialistas, que em vez de facilitar apenas "complexisavam" o que já era difícil de entender.

No meu blogue, tenho leitores do Brasil, de Espanha e das américas, que sabem quem é Pessoa, o citam e o admiram...

Ele é mesmo universal!

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Como não admirar o que é universal?
E belo, não tenho qualquer dúvida em afirmar, de uma frescura, de uma musicalidade até de uma transparência de imagem que sempre me esmagou quanto o fazem certas pinturas que vejo uma e outra vez e perante as quais sempre tenho a sensação de estar perante algo transcendental. Pessoa, na poesia, foi e continua a ser isso, belo, universal e de uma argúcia ímpar.


E subscrevo o que dizes quanto à sua capacidade de fazer simples o que outros manifestamente têm tanta dificuldade em exsplicar. Aliás, creio que aí reside outra das suas grandezas, se assim posso falar e já aqui falei a esse respeito, citando alguém -Josefa Paias- que me permitiu entender a razão de ser assim; é que ele foi capaz de transmitir ideias, sentimentos, sensações, dores com que muitos humanos se identificam e logo a universalidade, mas a profundidade do escrutínio também.

Infelizmente, entre nós, ainda podemos falar dele como um ilustre desconhecido. Enfim...

Aquele abraço, companheiro

Luís