-Sem dúvida. Ele defendia que era preciso que aparecesse, entre aspas, o super-homem, para que os portugueses pudessem cumprir o seu destino enquanto povo e que é o de se afirmar como a nação charneira da humanidade que é basicamente nisso em que consiste a ideia de quinto império, que nada tinha e tem a ver com um território, uma conquista ou um domínio territorial, antes designa ou se refere a um império do espírito de que os portugueses seriam assim como que uma espécie de guardiães e, logicamente por isso, a quem competiria levar ao mundo. Depois de terem dado novos mundos ao mundo no que diz respeito à descoberta da geografia do planeta, competir-lhes-ia assim fazer uma coisa análoga só que, desta vez, no plano das consciências, no domínio espiritual. Genericamente, eram mais ou menos estas as suas ideias sobre esse assunto.
-E que, mesmo nos dias que correm, quanto a mim continuam a fazer todo o sentido.
-O quê?
-Está a referir-se a quê? À ideia do quinto império ou à do super-homem?
-Bem, atrevo-me a dizer que me estou a referir tanto a uma como à outra.
-A ideia do quinto império… Se quer que lhe diga acho-a pura e simplesmente anódina.
-Alto lá com ela. A coisa pode ser muito mais complicada do que aparenta. Mas fundamentalmente, desde que não resvale para um messianismo etnocêntrico exacerbado e honestamente não consigo vislumbrar como é que a coisa pode deixar de chegar aí, mas seja como for, desde que não resvale para nacionalismos e messianismos sem sentido, também concordo que a ideia do quinto império é praticamente anódina, nada mais que isso.
-Já a ideia do super-homem me parece muito simplesmente uma curiosidade histórica sem sentido e sem o querer estar a melindrar, devo dizer que até a acho um tanto ou quanto perigosa, essa já pode ter efeitos muito mais perniciosos como os que de facto já teve. Afinal não era os nazis que sustentavam que os alemães eram uma raça superior…
-Mas isso não tendo necessariamente a ver com essa ideia de super-homem que interessou o Pessoa. Isso mais derivado de preconceitos racistas que os nazis tinham, não?
-Mas que indirectamente também influenciaram o conceito de raça superior que o Hitler usava. Precisamente a raça dos super-homens.
-O que estás a dizer tem sentido; basta lembrar os programas de purificação da raça que eles puseram em prática mal chegaram ao poder e que não visavam apenas eliminar os mais fracos ou aqueles que eles consideravam inferiores, como igualmente procuravam o objectivo de melhorar as características da que eles designavam por raça ariana.
-Apesar disso, vocês não acham que nós precisamos de uma humanidade assim?
-Mesmo nada.
-Mas olhe que digo com toda a sinceridade que estou absolutamente convencido que é de todo imperioso que isso venha a acontecer, sabe? Acredito nisso convictamente.
-Porque diz isso?
-O quê? Em que moldes é que o senhor vê isso?
-É muito simples, meu caro amigo. A questão é que o ser humano ainda permanece no limbo da humanidade.
-Explique lá isso.
-Você repare que o homem ainda vive escravizado pelas questões materiais da sobrevivência. Apesar de todo o aparato das tecnologias e de todos os avanços que as mesmas nos permitiram em termos de melhoria da qualidade de vida de muitas populações, a verdade é que fundamentalmente os problemas permanecem os mesmos de sempre e podemos dizer que tudo se resume ao facto básico de os seres humanos terem que ganhar a vida para sobreviverem.
-Posso então perguntar se o senhor está a falar de uma utopia comunista?
-E eu respondo-lhe que não sei, se quer que lhe diga não saberei dizer. O que eu posso acrescentar é que não estou a falar da grande maioria da população mundial que são as pessoas que vivem nos países pobres e que na larguíssima maioria dos casos se limitam a sobreviver apenas no domínio dos parâmetros mais básicos e elementares. Limitam-se a ganhar o alimento de cada dia, tantas e tantas vezes nem isso e pouco mais conseguem, eu arrisco-me a dizer que a pouco mais podem mesmo aspirar. Eu nem estou a falar desses. Estou antes a falar das pessoas que vivem neste lado desenvolvido, ou dito desenvolvido do mundo, incluindo aí e especialmente destacando aí, aquelas pessoas e já vão sendo muitíssimos milhões que até se pode dizer que vivem com bons padrões de conforto e com acesso mais fácil e garantido a tudo o que pode preencher digna e amplamente uma existência. A verdade é que mesmo essas pessoas se limitam a vegetar a maior parte do tempo para ganharem o seu salário e com ele o sustento de todo o quadro em que desenrolam as suas vidas. Quer dizer, mesmo essa gente que aparentemente poderia ser aquela que melhor se poderia elevar acima do básico da sobrevivência, mesmo essa gente se limita ainda a viver para ganhar o pão nosso de cada dia e pouco mais que isso.
-Mas veja lá, meu caro senhor. Isso não será um outro problema? Por um lado tendo a ver com fenómenos como o da redistribuição da riqueza, isto no que respeita à permanência da miséria e, por outro lado, tendo a ver com a fatalidade de termos que sobreviver neste modo de vida em que vivemos. Não acha que isso que sustentou terá mais a ver com este género de questões? O senhor não acha que está um pouco a confundir esses problemas?
(…)
-E o que propõe? Você propõe um mundo em que o trabalho não seja necessário?
(continua)
2 comentários:
"Você repare que o homem ainda vive escravizado pelas questões materiais da sobrevivência...
...e podemos dizer que tudo se resume ao facto básico de os seres humanos terem que ganhar a vida para sobreviverem."
Em que fase estaria a evolução da humanidade se não tivéssemos de dedicar metade do tempo de cada dia à nossa sobrevivência?
Não devemos esquecer que foi dedicando as 24 horas do dia à sobrevivência que chegámos aqui!
:)
Bradbury é mais conhecido pelas suas obras Crónicas Marcianas
(1950) e Fahrenheit 451 (1953). Não sei se és apreciador de fc. Eu sou.
Ele tem um conto (acho que é dele) em que um polícia da Terra é requisitado para ir a um planeta superdesenvolvido para resolver um crime. Essa civilização estava tão avançada que os homens viviam completamente isolados, comunicando entre si só através da televisão. No entanto, apesar disso, um dos habitantes desse planeta apareceu assassinado. Teve de ser um terráqueo primitivo (ainda por cima polícia!) a resolver o crime, acto que não havia memória de alguma vez ter acontecido.
Moral da história: Afinal, aquela sociedade não era perfeita!
Haverá alguma?
Abraço,
António
Bastante e uma memória que tenho foi o dia que faltei à escola para ficar a ler "A Máquina do Tempo" do H. G. Wells que só fui capaz de abandonar depois de devorada a última linha. Aliás, em jeito de homenagem a essa minha paixão -que ao nível do cinema ainda é maior- tenho até a minha modesta passagem pelo género no âmbito do teatro, com um pequeno conjunto de peças todas elas classificáveis no domínio da ficção científica.
Também eu não acredito em sociedades perfeitas e creio que jamais a Humanidade que somos o conseguirá atingir. Trata-se de um paradigma, mas não temos como o alcançar e isso tão só pelo simples facto de não sermos, nós próprios, seres perfeitos; ora a equação seria, como é que seres imperfeitos conseguiriam dar origem a mundos perfeitos? Parece-me que a resposta tem de recair sobre a impossibilidade.
É digamos, essa a lição da parábola de Babel que, mais do que nos dar o mito da origem das línguas, como agora alguns estudiosos pretendem, parece-me a mim que reflecte precisamente sobre a nossa imperfeição de seres naturalmente condicionados pela contingência do erro.
O que, por sua vez, não quererá dizer que não tenhamos por bom um tal paradigma. Pretendermos atingir a perfeição terá sempre como consequência que tentemos atingir o melhor e isso é bom, é, bem vistas as coisas, uma das principais molas do progresso que os homens têm conseguido desde que a mamãe Eva saiu de África à aventura de colonizar o resto da superfície terrestre.
Mas é assim, o trabalho continua(rá) a ser esse barrote que se nos entalou entre os dentes e não conseguimos remover, pois o problema seria sempre esse, qual a alternativa? E a verdade é que até aqui não existiu e se quisermos ser minimamente sérios, deveremos admitir que aqueles que se esfalfaram na labuta do trabuco foram aqueles que melhores resultados têm conseguido no domínio do respeito pela dignidade que cada um traz dentro de si quando nasce. Lá está, ganharás o pão com o suor do teu rosto...
É claro que hoje em dia vivemos no limiar de um mundo novo, quiçá com a probabilidade de os homens deixarem de ser escravos dessa obrigação de sobreviver, mas isso seria outra conversa que, possivelmente, até haveremos de continuar, mas, por agora, fiquemo-nos por aqui.
Aquele abraço, companheiro
Luís
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