terça-feira, 22 de junho de 2010

HÁ PINTASSILGOS NO MEU QUINTAL
XI

-Mas vocês vejam. Afinal o que é que tem produzido o progresso da humanidade? O que é que acham que tem feito com que as sociedades avancem?
-O Marx falava da luta de classes.
-Mas a coisa é mais complexa do que isso, não? Quer dizer, são vários os factores que podem conduzir ao progresso, que estão na base do progresso e nem todos eles terão a ver, mesmo indirectamente que seja, com a luta de classes, nos termos em que Marx a descreveu. Por exemplo, não sou capaz de ver que relação possa haver entre a inovação científica que, sem dúvida alguma, é uma das mais poderosas molas, salvo seja a expressão, do progresso, não vejo que relação possa haver entre isso e a luta de classes.
-Sim, claro, mas eu estava apenas a dar uma pequena nota de humor. Isto sem qualquer tipo ou intenção de ofensa aqui para este nosso amigo, como é natural.
-Mas a verdade é que o progresso, os avanços que a humanidade tem conseguido têm sido sempre fruto do génio e das capacidades de uma minoria de eleitos, de uma ou de outra forma, indivíduos que são iluminados e que são aqueles que fazem as coisas avançarem. Se não fossem essas elites que inventam e organizam o trabalho e as sociedades, muito provavelmente, os homens ainda estariam na idade da pedra. Por si, sozinho, o homem comum jamais teria sido capaz de abandonar o mais básico da sobrevivência. Ora é o escol dessas elites, são aqueles que entre esses mais se aproximam daquilo que será o homem perfeito, do homem que consegue compreender os mistérios do universo e da vida e que consegue viver acima disso, aquele que consegue elevar-se acima da simples vida material do dia a dia, são pois essas pessoas que mais e melhor nos podem fornecer a imagem do protótipo do que possa ser o super-homem que um dia terá que ser dominante para que a humanidade venha a ser capaz de viver em plenitude que, como já disse, quanto a mim, é o seu destino natural. É por isso que eu digo que se quisermos dar lugar a esse tal super-homem, temos que ter sociedades dirigidas, conduzidas, se quisermos, por elites fortes e determinadas e isso para que o homem comum não arraste a humanidade para a perdição e para que se impossibilitem as condições para o aparecimento desse novo homem tão necessário.
-Segundo o seu ponto de vista, é claro, seria essa a forma como poderia aparecer o super-homem.
-Sim. Tal como facilmente compreenderá, não iria ele surgir do nada, não é?
-O senhor desculpe-me lá se eu vou insistir num ponto, mas nós estamos a conversar e até tenho que dizer que esta está a ser muitíssimo interessante, mas a verdade é que eu não posso deixar de mais uma vez estar em desacordo consigo e, como já disse, até está a ser uma conversa cheia de interesse, o senhor compreenderá que até será uma forma de mantermos essa mesma conversação.
-Sim, é evidente. Se perante todos os assuntos apenas houvesse concordância, nunca teriam havido trocas de ideias e estou inteiramente de acordo consigo quando diz que este está a ser um daqueles momentos de que podemos com segurança dizer que se tratam de pequenas surpresas, pequenas mas agradáveis surpresas justamente pelo interesse que a conversa está a ter. Mas diga lá de sua justiça, você ia discordar de mim mais uma vez.
-É isso sabe? É que eu acho que mais uma vez o senhor está a confundir as coisas. Aquilo que sustenta a respeito das elites não deixa de ser, de alguma maneira, verdadeiro.
-Deixa-me só acrescentar uma pequena nota que é para dizer que a esse respeito é fundamental o trabalho de Vilfredo Pareto que sustentava, em síntese, que era a mobilidade das elites que permitia que as sociedades não entrassem em entropia e, por isso, regredissem e até desaparecessem, uma vez que eram as elites os estratos que poderiam trazer progresso a essas mesmas sociedades e daí o ser fundamental que elas se renovassem, precisamente por via da sua mobilidade.


-Pois, lá está e já agora que introduziste um parênteses, também eu digo que, não vindo aqui à conversa, mas até posso dizer que acho que é por aí que vai uma das causas dos problemas que a sociedade portuguesa atravessa nos dias de hoje e que é, precisamente, a inexistência de elites fortes e conscientes, inteligentes, conhecedoras e empreendedoras e não, como acontece, na minha opinião, é claro, em que a realidade que nos é dada a observar são elites ignorantes e quase que atreveria a dizer, cleptómanas. Mas isto é outra história que não vem agora aqui ao caso. Mas seja como for, portanto, o que o senhor defende sobre a importância das elites e do papel que as mesmas podem ter na melhoria das condições de vida das sociedades, isso não me parece que me possa merecer grandes reparos. O problema é que continua a ser exactamente o mesmo. Por um lado nem acho que essas elites tenham alguma coisa a ver com o ser ou o haver ou não um super-homem, da maneira como o senhor fala, o qual se assemelha mais a um paradigma, digamos assim, do que a alguém verosímil e necessariamente existente ou que necessariamente possa vir a existir. E por outro lado, continuo a não encontrar qualquer relação entre o que defende a esse respeito com o tal super-homem de que fala.
-Aliás… Desculpa interromper-te mais uma vez. Nem há, nem faz qualquer sentido que se pretenda que possa alguma vez haver esse tal super-homem.
-Pois, pois, o problema começa logo por aí, é que, de facto, esse tal super-homem pura e simplesmente não existe.
-Bem, nesse caso devo dizer que devem conceder que isso também vocês ainda não justificaram.
-Era o que estava a tentar fazer.
-Ora, isso seria o equivalente a uma alteração da nossa própria espécie.
-Não necessariamente. Não terá sido bem isso que eu sustentei. Eu não falei nesse sentido.
-Mas seria como se tivesse essa consequência, porque para chegarmos a esse tal homem perfeito de que o senhor falou, estaríamos com toda a certeza a falar de uma alteração da nossa própria natureza. Ora nós somos simples animais sujeitos ao erro e justamente essa é que é a nossa natureza. Por mais que uma pessoa seja instruída ela nunca deixará de estar sujeita a esse constrangimento. Haverá sempre a possibilidade de errarmos.
-Também me parece evidente que isso é incontornável, a menos que uma qualquer engenharia genética pudesse vir a alterar isso e aí já não falaria em impossíveis. De qualquer modo e tal como as coisas são, isso decore da nossa natureza genética e sabemos que o que é culturalmente adquirido não é biológica nem geneticamente transmitido. Pretender o contrário, até seria o recuperar do lamarckismo que a Biologia depois de Darwin rejeitou e provou como falso. Para além de que dificilmente se conseguiria imaginar como poderia a evolução vir a produzir um homem perfeito nos moldes em que o senhor o definiu.
-E não é só isso. Para uma pessoa como eu que desde pequenina fui educada segundo princípios religiosos, isso não faz de todo qualquer sentido. Que coisa é essa de sermos perfeitos como os deuses? Nós somos filhos de Deus e por isso somos estes seres imperfeitos que pela sua própria natureza vivemos na contingência de estarmos sempre sujeitos a cometer erros.

(continua)

4 comentários:

luis disse...

...quantos homens de elite nasceram de homens comuns? E quantos homens comuns nasceram de homens de elite?

Será que temos todos um antepassado comum como dizia, por exemplo, o Darwin? Ou será que não?

Aquele Abraço,
Luis Carlos

Luís F. de A. Gomes disse...

Pois é, amigo, esse é um dos problemas, "(...) quantos homens de elite nasceram de homens comuns?" e é por isso que são tão importantes os princípios e os mecanismos da justiça social. O(s) mito(s) de um qualquer homem novo nunca deixou de se acompanhar pelas maiores desgraças.

E temos esse antepassado comum, sim, alhures a(s) molécula(s) que ter(ão)á adquirido as propriedades daquilo que convencionamos chamar vida e a partir da(s) qua(is)l explodiu e se expandiu esta maravilhosa aventura em que às páginas tantas aparecemos, mais não fosse para pudermos desfrutar tamanha beleza.
Curioso é saber que toda essa matéria se formou nos cataclismos das fornalhas cósmicas estelares o que de nós faz verdadeiros filhos das estrelas que, por isso, quase se poderiam designar como as nossas antepassadas comuns. Darwin, esse, ficou fascinado quando reparou nisso e só lamentou já não estar entre nós para se espantar na estranheza dos nossos rostos.

Aquele abraço, companheiro

Luís

A.Tapadinhas disse...

Tenho andado por outras paragens, a minha mente ocupada (o disco rígido já tem pouco espaço disponível) e, por isso, tenho deixado passar sem comentários os dois últimos capítulos.

Continua em crescendo, diria, o duelo de palavras e de ideias. Não sei como irá acabar ou talvez (quem sabe?) nem acabe...

Não há engenharia genética que nos valha: os pintassilgos, que é o nome vulgar dado às aves do género Carduelis, são mais (bonitos) perfeitos. Hesitei entre os dois adjectivos: um servirá para qualificar a estética outro a função e qualquer deles é aplicável. Quando era moço e andava a caçar pássaros com a fisga, embora lhes atirasse a pedrada, fazia para não lhes acertar! Já sabia que ficava cheio de pena!

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

E há ainda quem duvide que as conversas são como as cerejas... Afinal tudo começou pela observação a respeito da ousadia de alguém querer escrever uma obra literária, afirmação que, de tão singela, poderia muito bem ter morrido logo ali, com uma simples palavra de anuência.

Por acaso fui armador de pássaros, com o amigo Luís Carlos e o saudoso Chico de boa memória, Francisco José Gonçalves, filho de Belmiro e Branca Gonçalves, gente de coração fundo e cérebro sadio que do trabalho tirou o pão e o agasalho sem alguma vez se curvar perante borrascas e ferimentos na alma e que na vida deixou um rasto daqueles em que florescem cores e húmus que persistem em não fazer mal a ninguém. E sempre de contas direitas que há visões de antanho que permanecem sem prazo de validade. Era na casa dele que tínhamos as ferramentas da arte, no quintal de uma casa térrea de chão acimentado mas já com luz eléctrica e casa de banho própria o que, para a época, representava a melhoria de uma condição de existência que as vicissitudes de um mundo injusto haviam trazido de outro abrigo onde o mínimo do conforto fora assegurado pelo braço determinado dos próprios. Lembro-me como para o Chico foi isso encarado como um prémio merecido de uma vida de trabalho árduo e ininterrupto. E era pois da casa dele que, nem sempre antes do Sol nascer como recomendavam as boas regras, lá partíamos para nos camuflarmos nas ervas e esperarmos que os livres se deixassem enganar com o ardil de uma qualquer coisa melhor, ouvindo o silêncio da brisa e, quando era o caso, das conversas entre as ramadas, tendo os céus por cenário e a erva da lezíria por horizonte. Era esse o preceito e se bem me recordo, junto da concorrência, o Chico gabava-se de ter a melhor negaça do mundo, uma lugra magnífica que era um espanto de ver, até pestanejava o asame sem que do toque da sua mão precisasse e o Chico que era magro de se contar costelas, inchava de gordo quando dizia estas coisas ao Vladimiro ou até entre os homens mais velhos, entre quem convivia nas noitadas de tabernice na sede do Grupo Columbófilo, onde era sócio e concorrente de outros que, por sua vez, diziam possuir os pombos mais rápidos e resistentes de que havia memória. Não ali, em outro local mas que era frequentado pela mesma espécie de gente alpercatada e de calças de ganga calejadas de carregamentos e outros esforços, a taberna do Martinho que já ia em cento e tantos anos de descontos para a caixa de previdência, aí, estava a dizer, houve até alguém que revelou ter um pombo que fazia a viagem ao Porto, com ida e regresso, nuns escassos quinze minutos. Aquilo é que era uma vida.
Infelizmente esse irmão de sempre partiu novo para a Eternidade, mas tenho a certeza que ainda hoje ele andará a pensar como é que se escapou um bando que havíamos conseguido levar à rede e sobre o qual ele aterrou depois de um voo de golfinho para evitar que as redes, vá lá saber-se porquê, não haviam fechado bem, deixassem fugir os pintassilgos que assim se ergueram em mancha e, zombeteiros, pois então, se reencontraram com a liberdade de caírem nas garras de algum gato, para desespero do nosso companheiro. E assim foi e hoje tenho para mim que se tratou de um final feliz, pois apesar de morrer novo, o meu querido amigo Chico viveu como quis.

E com esta memória do Francisco José Gonçalves me vou, não sem deixar aquele abraço

Luís