terça-feira, 15 de junho de 2010

HÁ PINTASSILGOS NO MEU QUINTAL
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-Olhe, vou dar-lhe um exemplo que assim, se calhar, serei bem capaz de me expressar melhor e portanto de me fazer entender mais facilmente. Já no Antigo Regime se dizia que o povo nunca viria a ser capaz de chegar às artes ditas maiores e quando começou a cultura de massas nas grandes cidades do século dezanove, logo apareceram determinadas vozes a sustentar que para que as obras pudessem algum dia chegar ao entendimento do cidadão comum, isso iria provocar uma diminuição, tanto da qualidade, como da profundidade das mesmas. Alegava-se que as pessoas vulgares, o homem comum, jamais seriam capazes da sofisticação cultural que lhes permitisse entender as obras maiores. Mas a verdade é que não foi nada disso que sucedeu, muito pelo contrário. E quantas não foram as obras-primas que se escreveram desde o século dezanove para cá e como se isso não fosse suficientemente significativo, quanto não se aprofundou o nosso olhar sobre a condição humana desde então? O Tolstoi, o Mann, o Steinbeck, só para dar uns poucos exemplos, foram lidos sobretudo pelos homens comuns. Portanto, não vejo como é que possa ser necessário que apareça um super-homem para que os seres humanos possam ascender a uma vida ainda mais plena do que aquela que a humanidade, ou, para ser mais e preciso e ir ao encontro das suas palavras, uma parte da humanidade já conseguiu adquirir até agora.
-E está mesmo convencido que foram lidos e entendidos esses autores que refere?
-Não tenho qualquer motivo para que possa pôr isso em dúvida. Muito embora tenha que admitir não ter como provar aquilo que estou a afirmar. Mas não vejo como possa duvidar e mesmo de modo indirecto é possível alegar nesse sentido. Olhe, estou, por exemplo, a pensar no Professor Francesco Alberoni e nos interessantíssimos estudos que tem escrito a respeito do amor e particularmente estou a considerar o que ele sustenta a respeito da literatura, por uma lado formatar –se é que esta palavra aqui não é muito abusiva- a literatura por um lado formatar a concepção que as pessoas fazem desse sentimento e, por outro lado e ao mesmo tempo, o facto de ela reflectir em parte essas mesmas concepções. Ora isso só pode querer dizer que as pessoas leram e entenderam essas obras, que os seus conteúdos, as suas mensagens, se quiser, passaram para a maneira de ver das pessoas comuns.
-Pessoalmente parece-me que tens toda a razão nisso que defendes. Mas eu gostaria de insistir num ponto que é, quanto a mim é claro, o da confusão que o senhor faz com uma realidade que decorre das condições de existência do quotidiano e a relação disso com a necessidade, digamos assim, do super-homem. Eu posso até admitir que sou bem capaz de estar de acordo com muitas das coisas que disse a respeito da vida de insignificância das pessoas comuns. E não sei se conhece um livrinho do Reich…
-Quem?
-Wilhelm Reich, um médico psiquiatra alemão, discípulo mas crítico de Freud com quem divergiu e que foi para os Estados Unidos onde veio a ter problemas por causa das ideias que defendeu no domínio da psiquiatria e do pensamento social.
-Não conheço. Posso estar a cometer alguma falha de memória, mas até me parece que nunca tinha ouvido falar em semelhante nome. Pelo que sintetizou, é-me totalmente desconhecido.



-Pois bem, acontece que esse Reich escreveu um pequeno livrinho, o “Escuta Zé Ninguém”, no qual apresenta uma visão que, em alguns aspectos, está muito coincidente com a sua e devo dizer que pessoalmente sempre a achei bastante acutilante. Inclusivamente essa dúvida ou objecção que o senhor coloca quanto à diferença entre ler e entender e a reserva que depois acrescenta quanto a sabermos se o leitor comum entende as grandes obras, digamos que isso são observações com que mais ou menos facilmente se poderá concordar; a verdade é que se olharmos com atenção para o cidadão médio, não sei se não será líquido que possamos sustentar que ele se caracteriza por algo mais que a simples entrega a uma vida, se quiser até poderemos dizer a uma vidinha de casa trabalho e vice-versa, com poucas outras fontes de ócio e direi mesmo de vida própria para além da televisão e, por exemplo, este ou aquele desporto. Há até uma pequena brincadeira que poderemos fazer para que se perceba melhor o que estou a tentar dizer. Imaginamos que vamos registar todas as alíneas, digamos assim que compõem uma vida de cada um de nós e que as vamos sobrepor numa espécie de grelha, Teríamos assim que uns trabalham, estudam, lêem, vêem televisão, etc. Não sei se me estão a acompanhar…
(…)
(…)
-Provavelmente veríamos que aqueles que mais se repetiriam e, em conformidade, mais sobrecarregariam a grelha seriam o trabalho, o serão em casa com a televisão, os desportos e coisas assim do género. Quero com isto dizer que eu concedo que o padrão do indivíduo médio, mesmo nas sociedades mais desenvolvidas e, no seio dessas, entre as mais cultas, mesmo aí, o padrão, digamos assim, do indivíduo médio não será muito edificante. Até aí… O que já me parece errado é querer passar daí para a necessidade do super-homem tal qual o senhor o faz. Isto porque tenho para mim que isso dependerá dos condicionamentos que a vida objectiva que as pessoas levam tem. E para mim é evidente que isso terá mais a ver com as desigualdades sociais do que propriamente dito com os seres humanos, por natureza, serem ou não capazes de superarem essa sua condição. Ele não há só desigualdades na distribuição da riqueza que só por si é um factor de primeiríssima ordem na capacidade que cada um possa ter ou desenvolver para escolher uma determinada vida. Isso só por si já é grave. Mas acontece e isso é bem capaz de ser ainda mais grave, acontece que há também desigualdades na distribuição do acesso aos instrumentos que permitem que cada um tenha ou possa ter um leque mais alargado de hipóteses de escolher o caminho que quer levar na sua vida. E o que se verifica é que a maioria está condicionada para viver nessa mediania,
-Também concordo com isso e, tal como tu, continuo sem perceber como é que isso possa ter alguma coisa a ver com a dita necessidade de um tal super-homem que, bem vistas as coisas, até me parece que nunca poderá aparecer, pelo menos no sentido em que este senhor terá colocado a questão.

(continua)

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