terça-feira, 7 de setembro de 2010

HÁ PINTASSILGOS NO MEU QUINTAL
XXI

-O que é que foi isso?
-O homem de Piltdown?
-Sim.
-Foram umas ossadas creio que de chimpanzé que foram descobertas no Sul de Inglaterra e que a Antropologia inglesa da época, estávamos nos finais do século dezanove, os académicos ingleses de então pretenderam que seriam os vestígios mais antigos dos antepassados do homem o que faria da Inglaterra uma espécie de berço da humanidade. Estão a ver a utilidade de um achado assim numa época em que os nacionalismos estavam em efervescência e em que as teorias racistas procuravam provar que existiam raças mais desenvolvidas que outras e fazia a classificação daqueles que consideravam inferiores e as que consideravam superiores. Estão a ver o acaso, não é? Mas depois descobriu-se que tinha sido uma fraude levada a cabo por certos académicos e outras pessoas e é claro que a História do Homem deixou cair esse pretenso achado científico. Enfim…
-A teoria da conspiração no século dezanove…
-Sim. A fraude envolveu altas individualidades do mundo académico e com certeza que não só.
-Dava um romance, daqueles que andam agora na moda.
-Ah isso dava, não tenho dúvidas, mas teria que ser a mão de um mestre a tratar disso, caso contrário lá viria a ser mais um daqueles casos das máquinas de escrever. Estou a lembrar-me de um monumento como “A Guerra do Fim do Mundo”, do mestre Llosa, em que sem pretensiosismos e sem palha de erudição balofa ele consegue criar uma personagem que personifica a visão científica justamente desse século, com aquele aventureiro que era frenologista e que via tudo à luz das ideias do Broca. Mas isso não está ao alcance de qualquer escrevinhador, isso são artes de contar que só mesmo os grandes é que as dominam e sabem utilizar com elegância.
-Esse é um dos grandes romances escritos em castelhano e só me admira como é que o Vargas Llosa ainda não ganhou o Nobel da literatura.
-Não é política nem literariamente correcto e ainda por cima tem a ousadia de pensar fora dos cânones de qualquer cartilha.
Mas não era disso que eu queria falar e vou voltar atrás para concluir o que estava a dizer.
E o que eu estava a dizer é que apesar dos erros e das correcções que possam ter havido no decurso dos estudos da História do Homem, mesmo tendo em conta tudo isso, a verdade é que a informação que possuímos aponta, toda ela, para que, à semelhança de todos os seres vivos que existem e existiram no nosso planeta, também nós tenhamos sido resultado de um processo mais ou menos longo de evolução. Quer dizer a nossa espécie deriva de outras que a antecederam e que se transformaram por via da melhor adaptação de novas características que foram surgindo em indivíduos das mesmas e que por isso, com o tempo, foram aqueles que melhor e mais se reproduziram levando essas alterações a conferirem novas características a esse grupo ao ponto de em muitas situações virem a originar o aparecimento de outras espécies diferentes. O criacionismo teria que saber explicar como é que isto não se teria passado assim e não o faz, limita-se a apresentar ideias que, sem qualquer corroboração empírica, justifiquem a ideia de que para que, as coisas sejam como são, teria que ter havido um qualquer tipo de intervenção Superior. Mas o que teria que igualmente fazer seria explicar como é que aquilo que manifestamente são as provas de uma evolução não o seriam de facto. Não o fazendo, não pode deixar de ser uma falácia.


-E não acha que ainda assim se poderá perguntar se Deus não poderia ter tido aí uma qualquer intervenção?
-Não, não acho. Ele, de facto, descansou depois de lançar a obra, quer dizer, é aquilo que já disse, na verdade Ele não interfere nos fenómenos do Universo. É justamente aí que reside a nossa liberdade naquele sentido em que falei anteriormente. Ele simplesmente esperou que no contexto da Sua obra se pudesse vir a revelar a inteligência que fosse capaz de O reconhecer e de querer ir ao Seu encontro. No fundo é isso que significa que Deus descansou ao sétimo dia. Não te ofendes por eu dizer isto, pois não?
-És parvo. Claro que não. Bem, confesso que nunca tinha colocado o assunto da maneira como tu o fazes, mas estou a compreender aquilo que estás a dizer e não deixo de encontrar fundamento nas ideias que estás a sustentar. É o que eu já disse, eu estou verdadeiramente surpreendida contigo.
-Pois bem, mas nesse caso digo-te mais quanto a isto de Ele simplesmente esperar que a inteligência se revelasse e livremente quisesse ir ao Seu encontro, isto é, livremente se deixasse tocar pelo reconhecimento da Fé. Eu faço uma pergunta: o que é para vocês a expressão mais elevada da inteligência?
(…)
(…)
-Sim, o que é que poderemos designar como o mais elevado nível de inteligência?
-Não estou a perceber onde queres chegar, nem sei se estou a perceber o que pretendes perguntar.
-Não quero chegar a lado nenhum estou apenas a fazer uma pergunta. O que é que vocês acham que nós poderemos considerar que é o máximo da inteligência?
-Será a capacidade para resolver os mais complexos problemas matemáticos, ou da física? Será isso que você quer dizer?
-Também responderias assim?
-Não sei. Como disse não estou a perceber onde queres chegar. Mas talvez seja isso que o senhor disse, não?
-Não, não é. Pensem bem. É claro que para resolvermos certos problemas matemáticos e científicos é, sem dúvida alguma, necessário que a pessoa tenha não só determinados conhecimentos que podem ser mesmo consideráveis, como também tenha certas capacidades de inteligência que, poderemos dizer assim, não estarão repartidas por todos os seres humanos e muito menos de igual modo. É claro que isso é um reflexo da inteligência, é uma manifestação do quão inteligente pode ser um determinado indivíduo. Até aí estamos de acordo. Mas o máximo expoente da inteligência está em sermos capazes de acedermos à tolerância de aceitarmos o próximo por muito diferente que ele seja de nós. É afinal essa manifestação de inteligência que nos leva à harmonia de vivermos em paz com os outros e não será esta a única forma que está ao alcance da nossa espécie para que esta se preserve e permaneça na busca da Eternidade?
-Muito interessante, sem dúvida e cheio de sentido, isso que estás a dizer.
-Ora não é então curioso que a expressão mais elevada da inteligência seja precisamente aquela que melhor nos poderá permitir alcançá-Lo?
-Isso que estás a dizer é muito bonito de se pensar.
(continua)

7 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Mudou completamente o sentido da palavra inteligência com a sua manifestação suprema: a tolerância!

Esse sentido inovador coloca a máxima inteligência na cabeça de uma criança, ou no tolinho da aldeia...

Quem é mais tolerante=inteligente que uma criança ou um "tolo"?

E também, e não menos importante, que todos nascemos com a mesma inteligência. A educação, a sociedade em que estamos envolvidos é que a pode conspurcar.

Em termos populares as crianças e os loucos são os que estão mais perto de Deus...

Mais uma vez, o povo tem razão.

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Ora aí está. Confesso que nunca tinha pensado o assunto sob esse prisma.

A inteligência é um atributo da nossa espécie; como animal cultural que somos, podemos tomá-la como uma ferramenta, aquela que a biologia nos dá. Infelizmente ou não, não traz consigo livro de instruções pelo que o uso da mesma depende de cada um de nós.
Ora esse é um sentido ético da inteligência que em geral nunca é considerado, mas existe, diria que é empiricamente verificável, pelo que de modo algum o poderemos considerar estranho na Humanidade. É pois um acto de vontade, de consciência e, posso estar enganado, parece-me que será mais nesta perspectiva que a personagem usou a ideia.

A criança e o tolo -atenção que tolo não tem que necessariamente significar louco e há um uso que assimila ambos os vocábulos ao mesmo significado- materializam a escolha inocente -a que não é conspurcada pelas peripécias e condicionalismos do fluir enculturativo e de todas as envolvências da socialização, como dizes- não tanto um comportamento adoptado por tomado como melhor que outros. Digamos que tantos uns como os outros serão espontaneamente assim, no caso, tolerantes.
Mas aqui temos o contraponto da outra sabedoria popular que lembra as papas com que se enganam os segundos, como que para nos recordar que é aquela muito complexa e de outra forma seria insólito que tivéssemos conseguido tanto em tão escasso par de centenas de milhares de anos.

Contudo, não deixa de ser interessante que o povo faça a leitura que lhe atribuis, pois a verdade é que a criança expressa tolerâncias que, muitas vezes, estão interditas aos adultos pela formatação que a sua cultura lhes deu -e isto sem qualquer ponta de determinismo cultural que seria de todo um absurdo pela contradição entre as partes que pressuporia em relação aos argumentos anteriores. Os preconceitos rácicos são um bom exemplo disso e qualquer jardim escola misto é um bom laboratório em que tal se pode facilmente verificar.

Mas a consciência e o livre arbítrio, bem como a inteligência são apanágio de qualquer um e por isso as crianças assimilam e processam e também agem pela sua própria vontade e são bem conhecidas as histórias de meninos e meninas perversos que se comprazem com o mal alheio. É a natureza humana e foi justamente nela que as utopias de um homem novo -subtilmente a companheira da ideia do mundo novo de um amanhã melhor- esbarraram. Afinal somos apenas humanos inapelavelmente sujeitos ao erro, no limite, de uma opção desajustada para com os outros ou outrém.

Daí o sentido ético encontrado para a inteligência que é a propriedade que nos é dada para interagirmos com o mundo envolvente.

Será que só no Seu encalço seremos capazes dessa inteligência ética? Não me parece que Ele seja o único caminho para aí chegar e a criança que se fez homem, mesmo longe Dele, não estará por isso mais distante de conseguir encontrar-se em tal uso da inteligência.

Devo admitir que também não me parece que seja um caminho fácil e apesar de compreender o pensamento da personagem e de genericamente até ser capaz de o subscrever, não reinvidicaria para mim a exemplicação de alguém assim.
Mas eu limitei-me a escrever o conto, só isso.

Aquele abraço, companheiro

Luís

luis santos disse...

Olá Luís. Só agora, 6ª feira, 19h, li o teu texto. Curiosamente, o texto que publiquei hoje cruza parte da temática que aqui abordas. Embora tivesses feito referência no texto anterior ao homem de Piltdown não há relação nenhuma entre ele e este que agora publiquei. Digo-o,simplesmente, para evitar más interpretações entre os mais desprevenidos. De resto, não será de estranhar que aqui e ali abordemos temas comuns...

Grande Abraço.

Luís F. de A. Gomes disse...

Não há qualquer problema e muito menos qualquer possibilidade de mal entendido.

A Antropologia, melhor dizendo, o vasto universo das Antropologias abarca um conjunto de saberes e métodos de pensamento e entendimento da realidade do Homem incrível; a Antropologia está para a Humanidade com a Astrofísica para o Universo. É depositária de conhecimentos a respeito de toda a História Humana quer enquanto espécie em si, quer enquanto ser social e portanto enquanto o animal cultural que por isso se adaptou a todas as geografias da Terra e, numas mais radicalmente que noutras, as alterou em seu benefício –esta do seu tem muito que se lhe diga se atendermos à muitíssimo desigual repartição dos rendimentos a nível planetário e particularmente dentro de cada país. Seja como for, a Antropologia é talvez a única área de saber que nos permite uma visão global da nossa caminhada, na medida em que na sua vertente antropobiológica -salvo seja a expressão- nos obriga a uma certa reconstrução cultural do passado pelo que, obviamente em âmbito inter-disciplinar, nos habilita a podermos ver um filme das diversas culturas quer no espaço quer no tempo. Com efeito, existe aí um banco de dados a respeito de todas as populações humanas que actualmente habitam o planeta.
Não estamos contudo no domínio de uma ciência exacta. A um certo nível, estamos mais perto das metodologias da História, genericamente das Ciências Sociais; quando falamos da hominização, aproximamo-nos das competências e modos de operar do campo das biologias. Tanto num caso como no outro não há a possibilidade da demonstração pelo que os argumentos, as ideias e as teorias não têm que ser necessariamente universais, isto é, aceites por toda a comunidade científica ainda que haja toda uma linguagem que o é, uma série de conceitos que são reconhecidos de igual maneira em toda a parte e até explicações que são tidas como boas por todos os que se debruçam sobre tais matérias. Ora se uma atitude científica pressupõe, em si mesma, a abertura para a pluralidade de expressões e pensamentos e, de facto, tal sucede em todas os quadrantes dos saberes científicos, mais ainda será de esperar que ela aconteça num domínio onde a característica da universalidade é tão difícil de atingir e nem sempre é possível.
É enorme a variedade das correntes que já surgiram na Antropologia Cultural e sem prejuízo de preferirmos umas a outras, de considerarmos uma teorias melhores que outras, certas explicações mais elegantes que outras, é absolutamente natural que hajam pontos comuns nessas muitas abordagens e que em alguns pormenores aconteçam repetições. Não vejo que venha mal ao mundo por isso e pessoalmente não é algo que me preocupe.
É bom de ver que há todo um potencial de reflexão que só tem a ganhar com a multiplicidade de leituras e pontos de vista e isto sem prejuízo da reserva de achar que nem todos os contributos tenham resultados positivos e enriquecedores. Seja como for, mais não sendo pelo efeito do espelho, tenho por princípio que a pluralidade de abordagens é sempre um fermento propício ao aparecimento de ideias –novas ou renovadas- ou ao seu aperfeiçoamento.

(continua)

Luís F. de A. Gomes disse...

Quando me candidatei aos estudos universitários, teria entrado em qualquer dos cursos a que poderia aceder. Escolhi Antropologia não por qualquer curiosidade científica propriamente dita ou qualquer vontade de vir a trabalhar nessa área, mas apenas porque pelos dados que então reuni, me pareceu que era aí onde melhor me poderia habilitar para fazer aquilo que realmente queria e que era fazer literatura de ficção, quer dizer, entre os diversos cursos por que poderia optar, tudo indicava que seria aquele em que poderia aprender as mais relevantes ideias e teorias, bem como as melhores metodologias e ferramentas de pensamento para me arriscar a tentar compreender a humanidade, a natureza humana e a partir daí, pelo menos, conseguir construir personagens credíveis e consistentes, mundos inventados, é claro, mas que formassem pessoas, tal qual eu e tu, capazes de saírem das páginas do livro e ganharem vida própria, a respeito dos quais nos fosse dada a sensação de que os mesmos poderiam sentar-se connosco a uma mesa e conversas –como o fazem aqui neste conto.
Hoje, mais de trinta anos passados sobre essas decisões, não tenho a menor dúvida que acertei, em cheio.
Como é fácil de entender levei a licenciatura muitíssimo a sério a que não foram estranhos os resultados finais da mesma e para além desse interesse particular que referi, confesso que comecei por me espantar com o interesse o potencial daquele universo de saberes e à medida que fui crescendo nos estudos, fui ganhando uma curiosidade intensa por diversas das suas problemáticas e posso dizer que acabei por extravasar o principal motivo que ali me levara, acabando por me vir a pós-graduar e, ainda que na modalidade de um trabalho independente e freelancer, se o termo aqui tem alguma aplicação, até a permanecer activo e a fazer trabalho de investigação na área do racismo.
Mas isso é uma decorrência do meu principal interesse que é a literatura e como há muito que percebi que esta última é mais uma das fontes de conhecimento a respeito do Homem, nada há que lhe possa ser estranho ou desprezível e muito menos ideias –vindas de onde vierem e ainda mais das Antropologias- que naquela não possam ser processadas de maneira a que os leitor seja confrontado com o convite para reflectir sobre este ou aquele assunto, este ou aquele fenómeno.
Ora como poderia então haver mal entendidos? Não poderia, a menos que eu tivesse a pretensão de saber tudo ou ter a única verdade ou… Sim, é claro, essa hipótese também é válida, fosse pura e simplesmente parvo e pensasse que todo e qualquer teria que pensar exactamente como eu. Seria uma tristeza e, sobretudo, uma ofensa para este próprio espaço que se alguma característica tem, é ela a diversidade, de opiniões, abordagens, gostos e preferências. É assim afinal que é a vida e é exactamente dessa maneira que gosto dela pelo que é assim que deve ser e apesar de ser parte interessada e, em conformidade, a minha opinião ser parcial, não tenho dúvidas em dizer que é dos blogues mais interessantes com que me tenho deparado e só é de lamentar que não seja mais conhecido.

E pronto, aquele abraço, companheiro
Luís

luis santos disse...

Obrigado pelo extrordinário conhecimento que as tuas palavras revelam. Só Deus sabe quanto te devo por ter a possibilidade de ter tido na minha vida um amigo-primo-irmão ligeiramente mais velho.

Que Deus te abençõe, sempre!

Luís F. de A. Gomes disse...

É verdade, estamos perante a amizade de uma vida que já vai ganhando volume no número de décadas que contém.
Sempre brindo a ela, do fundo do coração, pois não tenho dúvida alguma que em boa parte, em ela, por ela, no âmbito de todas as envolvências que aí houverem e as vivências, as experiências, as aprendizagens que proporcionaram, não só em boa parte vieram a condicionar muito daquilo que eu sou, como pessoa, como também a propiciarem grande parte do húmus em que procuro gerar as palavrinhas com que vou criando as pequenas histórias que gosto de contar.
Sobre este último aspecto, para quem ler com atenção o que tenho vindo a escrevinhar, há todo um clima que se faz sentir, todo um laivo de humor ao mesmo tempo subtil e carinhoso que percorrem as minhas páginas que vêm justamente desses anos em que a nossa amizade se foi solidificando e que foram os mais importantes e decisivos para o nosso crescimento enquanto pessoas.
É pois de uma longa amizade que estamos a falar que pode ter andado por aqui e por ali mas permaneceu, sempre e por isso e pelo que disse anteriormente, sempre a ela brindo, no fundo do meu coração.

Nesta medida, tenho a certeza que Ele sabe ser essa dívida recíproca e acredito que, por tudo o que escrevi, se Fosse dado a pensar sobre ela, concluiria pelo peso maior do meu prato.

Aquele abraço, velho companheiro

Luís