terça-feira, 28 de setembro de 2010

HÁ PINTASSILGOS NO MEU QUINTAL
XXIV


-A ciência chama-nos a atenção, dá-nos a entender, põe em destaque a singularidade que é a vida, a irrepetibilidade de cada ser.
-Explique-se melhor.
-Se você verificar as contingências que são precisas que se reúnam para o aparecimento de um determinado ser, percebe que há uma singularidade tão grande, há um conjunto de circunstâncias que se combinam de um modo e um momento tão únicos que não têm qualquer repetição no decurso do tempo. Ora se aplicarmos isso ao ser humano, para que cada um de nós tenha nascido foram precisas a reunião de tantas circunstâncias que só por si nos confeririam a máxima importância. Se a isso acrescentarmos o facto de sabermos que resultamos da reunião de um espermatozóide determinado com um óvulo também ele determinado e que se fosse outro espermatozóide e outro óvulo já não nasceríamos aqueles que somos mas outros, considerando tudo isso verificamos uma singularidade tão irrepetível… Repare que mesmo no limite único da nossa génese, isto é, no acto preciso de que parte a nossa formação enquanto ser vivo, mesmo aí permanecemos nesse domínio da singularidade, do irrepetível, quer dizer, tendo também isso em conta, então não há como negar que a vida, as nossas vidas, são uma singularidade tão grande, são tão irrepetíveis que por si só valem como toda a humanidade e por isso também não podemos deixar de as achar infinitamente dignas e a partir daí também poderemos construir todo um sistema de ideias e valores que se alicerce no respeito pela vida, pela dignidade dos homens que nesse sentido nascem iguais e fraternos por serem membros de uma mesma espécie e, por isso, todos eles, à nascença, infinitamente dignos e merecedores de todo o respeito. Mas ainda há uma outra maneira de aí chegarmos por via da racionalidade científica, se assim podemos falar, desta vez parece-me a mim que pelo lado da filosofia.
(…)
-Sou toda ouvidos.
-Basta que pensemos na morte.
-Na morte?
-Sim.
-O que é que a morte tem a ver com isto?
-Ora bem. Consideremos o ponto de vista materialista segundo o qual não existe qualquer Paraíso e que a morte é pura e simplesmente o fim de tudo. Não existe nada mais para além do derradeiro suspiro de cada um. Há quem defenda isso, não é assim?
-Sim.
-Então, nesse caso, voltamos a ter que considerar tudo aquilo que dissemos a respeito da singularidade de cada uma vida e por via disso do quão cada vida terá que ser necessariamente preciosa. Ela acontece uma única vez, não mais se repetirá e isso volta a remeter-nos para a tal singularidade tão grande que, por si só, nos confere esse tal estatuto de infinitamente dignos.
-É uma observação pertinente.
-Mesmo tendo em conta todo o ror de atrocidades que desde tempos imemoriais o homem tem infligido ao seu semelhante?
-Mesmo tendo isso em conta, é claro e repare que a ciência, uma vez mais, vem em nosso socorro nesse aspecto.
-Como assim?
-É que apesar de, pelas provas arqueológicas que temos encontrado, sabermos que os seres humanos sempre se flagelaram uns aos outros, a verdade é que também se sabe que a natureza humana não é a da concorrência e da conquista e da rapina.
-O que queres dizer com isso?
-Se não é parece, não?



-Mas não é. Os seres humanos viveram a maior parte da sua existência enquanto espécie como caçadores e recolectores e, nessa dimensão, a chave da sobrevivência sempre foi a da partilha e a da cooperação. Mesmo tendo em conta a violência entre os homens desde os tempos mais primitivos, a verdade é que em tal modo de vida que foi o nosso desde as origens e que partilhamos ou herdamos das espécies anteriores das quais evoluímos, como, por exemplo, o homo erectus que, tudo o indica, já seria caçador, em tal modo de vida, dizia, a chave da sobrevivência sempre foi a da partilha e da cooperação e, se tivéssemos alguma natureza, seria assim essa. Portanto, nunca poderíamos sustentar que o homem é, por natureza, concorrente e predador em relação ao seu semelhante ainda que de facto também o seja, quer em relação ao seu semelhante como em relação ao meio envolvente no qual sobrevive. Mas não é essa a característica que lhe garantiu a sobrevivência; essa foi a da partilha. O gesto aparentemente inocente do caçador que chegava ao acampamento e partilhava a carne, da mesma maneira que esse outro gesto de apresentar, para a refeição do dia, aquilo que se tinha recolhido no ecossistema circundante. Foi isso que possibilitou que as populações humanas sobrevivessem e se multiplicassem num meio que, apesar de toda a abundância que a Natureza lhe colocou ao dispor, não deixava por isso de ter as suas hostilidades e naturalmente mortais. Mas foi essa relação de grupo que permitiu aos seres humanos resistirem à fome e ao frio e se, quiséssemos apontar alguma natureza para a nossa espécie, essa seria certamente a primeira de todas. Afinal, é aquela que seguramente se verifica desde sempre. Para além do que sabemos que existem populações humanas que nunca conheceram a guerra que, tal como os Andaman do arquipélago do Sueste do sub-continente indiano, nem mesmo têm uma palavra para designar esse fenómeno.
-Muito curiosa, essa tua observação.
-Mas isso mostra-nos que não estamos condenados e viver em conflito uns com os outros, não é?
-Sim.
-E isto mesmo tendo em consideração que também há povos que vivem sobretudo da caça e da recolecção, como nas terras altas da Nova Guiné e que vivem em quase conflito permanente entre grupos diferentes. Há meio século até, ainda haviam caçadores de cabeças. Mas não é isso que apaga aquilo que disse.
E agora voltando ao Pessoa, é por tudo isto que referi que, em minha opinião, não achei assim tão transcendente o seu ponto de vista da potencial infinitude que cada um tem dentro de si.

O sopro e o arranhar do chão, cascateado numa amaragem fonte de um ondulado aplaudido pelos piares que passam e, no atrevimento, saltitam nas margens, na concomitância do gargalhar da folhagem.

-Vocês não se querem levantar e passear um pouco? Não quererão aproveitar a frescura para continuarmos esta conversa por este sítio tão bonito?
-Por mim, já estou no ir.
-E eu já estou levantada.
-Vamos então.
-Depois de si.
(…)
(…)
(…)
-Diz-se que as conversas são como as cerejas, não é verdade? Mas depende sempre da qualidade das mesmas, não será? Aqui temos daquelas gradas e cheias de sabor. Já repararam onde o nosso Fernando Pessoa nos levou? Não será isso um testemunho, o melhor testemunho da grandeza da obra que nos legou?
-Estou inteiramente de acordo consigo.
-Não nos faltam provas de…


FIM

4 comentários:

A.Tapadinhas disse...

É necessário um elaborado conceito intelectual, para tomar consciência que eu (cada um de nós) sou irrepetível, único e, por isso, importante em tudo o que se desenrola no mundo. Bater de asas da borboleta, na teoria do caos...

Os nossos avós para sobreviver, depressa chegaram à conclusão que o grupo era indispensável à sua sobrevivência, porque havia animais mais fortes, mais rápidos, mais... tudo, excepto um pequeno pormenor: não tinham o polegar oponível.

A família, cedo se transformou num conceito alargado (e com tendência para alargar cada vez mais): tribo, povo, raça... ... humanidade!

Estamos, agora, no dealbar de um novo conceito: o planeta não é exclusivamente nosso, os animais e as plantas não foram colocados na terra para nosso divertimento...

Cada um de nós tem uma imensa responsabilidade: temos a inteligência, temos os meios para, não digo evitar o colapso, digo prolongar este ciclo de vida.

Far-se-á com pessoas como, Pessoa...

...mas sem os pintassilgos que poisavam regularmente às terças-feiras, no meu quintal!

Obrigado por teres compartilhado connosco este belo trabalho!Faz bem à saúde pensar! Parabéns!

Aquele abraço,
António

luis santos disse...

Obrigado pela partilha dos bandos de pintassilgos que sempre pulularam pelo nosso quintal. O Fernando Pessoa sai envaidecido pelas ricas reflexões que te proporcionou. E terá gostado de ler, com certeza. Uma outra figura sempre omnipresente durante as leituras, não menos valiosa em nós que Pessoa, foi o Francisco José Gonçalves, ele próprio, todo ele, um pintassilgo, nas cores, no esterno, na alegria, o que o tornava único, pois claro, à semelhança de cada um de nós. Aqui fica uma singela homenagem a esse nosso companheiro de passarada, e tão parecidos com os anjos que são. É esta importância de sermos únicos, creio, que torna tão singular, especial, este nosso Estudo Geral. Esta capacidade de assumirmos e partilharmos com os outros as nossas criações, não ficando atrás dos que revelam o artista que existe no fundo de cada um de nós. Ou a vida não fosse um palco e a luz das estrelas os holofotes que nos fazem brilhar. "O homem não nasceu para trabalhar, mas sim para criar", diria o Professor Agostinho da Silva. Felizes dos que atingiram na vida a criatividade absoluta, quem sabe o "update" necessário para transmigrar para outros planos... Talvez por isso seja importante continuar o Estudo. Já pensaste na próxima partilha habitual das terças-feiras?

Luís F. de A. Gomes disse...

Pois é Tó, pensar faz bem à saúde e aquilo a que estes pintassilgos poderiam aspiurar seria a isso mesmo, deixar um pequeno convite para que as pessoas pensem, preferencialmente pela sua própria cabeça, pois afinal sempre caberá perguntar o que andamos cá a fazer que é capaz de ser uma das questões cruciais que nos distinguem dos outros seres vivos.

Em todo o caso devo dizer que faltam ainda os finalmentes pelo que não será hoje a despedida, propriamente dita, dos fascículos deste conto, apesar de a história, essa, ter, de facto, terminado.

Obrigado pelas tuas palavras que são sempre reconfortantes de ouvir, mas o prazer por ter escrito e, porque não dizê-lo, de o apresentar publicamente, foi meu e quanto a este último aspecto, mais ainda por o ter feito num espaço tão interessante como este blogue.

Aquele abraço

Luís

Luís F. de A. Gomes disse...

É isso amigo o homem nasceu para pensar, mas o problema é que no pensar é que está a subversão e vai daí, os senhores do mundo...

O "Estudo Geral", à sua mnaneira, vai por esse caminho, mais não fosse pelo facto de se fazer contra o pensamento único de que enfermam as sociedades em que vamos vivendo e que tanto atrofiam a individualidade de cada um, das quais fazem fonte de força do rebanho que mantém os alicerces do mundo de ganância que se tem consolidado desde há vinte anos para cá e onde, apesar de todas as melhorias, porque as há e sucessos na saída da pobreza de milhões e milhões de almas vivas, a concentração da riqueza é cada vez maior, a repartição da mesma tem sofrido retrocessos graves e, em conformidade, aumenta o fosso entre os mais ricos e os mais pobres.
Faltam pois pensamentos alternativos e, nesse sentido, o "EG" -é giro porque se pode dizer o ovo, quer dizer a semente de um futuro- é uma praça de liberdade, um exemplo de coragem e de fermentação de ideias que, para meu gosto pessoal e aqui sempre ressalvo que, de certa maneira, sou parte interessada pelo que o meu ponto de vista será sempre parcial e jamais isento, mas seja como for, dizia que o EG é uma casinha de conversas e pensamentos que dá gosto acompanhar, repito, na minha opinião, é claro.

Tal como é claro que este meu conto poderia, atendendo ao título, ser dedicado à memória desse nosso irmão que já partiu há duas décadas para nos acompanhar a partir do regaço da Eternidade onde seguramente está. Contudo, dediquei-lhe um conto que compilei nas "Histórias da Margem Sul" e que justamente, faz salvaguarda da memória da nossa infância justamente relacionada com esta vertente da passarada. Depois, depois decidi que estava na hora de dedicar um trabalho à Bélinha que me acompanhou no meu crescimento de quem escreve e muito acabou por contribuir para que eu tomasse o rumo que tomei em direcção à obra que tenho vindo a realizar, mesmo que em silêncio e que agora tenho vindo a divulgar ao público leitor -arrogando-me da vaidade de ter um público leitor.

Quanto ao futuro, já tenho ideia do que vou apresentar e de como o farei mas não será aqui e agora que vou falar disso. Apenas posso acrescentar que, da mesma maneira que o "Há Pintassilgos..." me pareceu ser um trabalho adequado para sair aqui, no EG, tenho para mim que o mesmo sucederá com a próxima publicação que conto fazer. Seja como for, ainda faltam algumas semanas até chegar lá, pois há os finalmentes dos pintassilgo que terão que ser feitos. Há a regra da honestidade intelectual para respeitar.

Aquele abraço, companheiro

Luís