terça-feira, 21 de setembro de 2010

HÁ PINTASSILGOS NO MEU QUINTAL
XXIII


-Ai, agora não posso estar de acordo contigo. Então e nós? Que sentido para nós humanos?
-Não te aflijas, minha cara. É precisamente aí que entra a Fé. A vida do homem tem ou terá o sentido que lhe quisermos dar. É tão simples como isso. E para aqueles que foram tocados pela Fé, eu gosto de dizer para aqueles que foram refrescados pela carícia do dedo de Deus, é para esses que a vida adquire sentido e esse só pode ser o de querer ir ao Seu encontro, estás a entender?
-Sim, visto dessa maneira…
-Ora acontece que é precisamente por em termos factuais não sermos capazes de encontrar qualquer sentido para o Universo e para a vida, é justamente pelo facto de na realidade eles surgirem –salvo seja a expressão, mas aqui para efeitos da conversa serve- é precisamente porque eles nos surgem sem qualquer sentido que lhe poderemos atribuir um determinado sentido. Isto pode parecer um truque intelectual mas não é e até me parece bem fácil de entender; parece uma redundância, mas a verdade é que se houvesse um qualquer sentido pré-destinado para o Universo e a vida, a menos que ele manifestamente fosse o de um desenlace no colo da Eternidade, quer dizer, a menos que ele próprio apontasse então para Deus, a menos que fosse assim, de outra forma não teríamos como poder ser tocados pela Fé. Ela pura e simplesmente não teria qualquer espaço para aparecer. E mesmo que fosse dessa forma, quer dizer, se o Universo e a vida tivessem esse tal sentido que apontasse para Deus, então também nesse caso a Fé não teria qualquer espaço pois ela estaria seguramente implícita, quer dizer, viria gravada, seria uma característica da própria espécie pois, independentemente de tudo o que pudéssemos fazer, o destino final seria sempre esse.
(…)
-Mas ainda para além disso, aí não teríamos qualquer maneira sequer de conceber a própria Fé, pois dessa forma não haveria o livre arbítrio que nos possibilita a escolha ou não em que ela se materializa. Desse modo não seríamos nós que escolheríamos ir ao Seu encontro, digamos que à partida já estaríamos programados para o fazer. Até poderia admitir, por hipótese de absurdo, que pudessem existir universos paralelos em que isso pudesse ser assim. Mas não custa muito perceber que aí estaríamos perante uma realidade completamente diversa desta e sobretudo completamente diferente; os pressupostos da mesma sendo outros, teriam que provocar materializações completamente distintas destas. Digamos que assim, a Humanidade, se é que pudéssemos usar esse termo para uma qualquer espécie que se nos assemelhasse, seria seguramente outra. Tal como a conhecemos, a Humanidade, pura e simplesmente não existiria.
-Estou a entender o que queres dizer.
-Mas desculpe-me lá mas há qualquer coisa que me escapa em toda a sua exposição.
-O quê?


-Então o senhor está a afirmar que nós damos sentido a uma coisa que a ciência, precisamente segundo aquilo que disse, nos diz que não tem sentido algum? Não podemos encontrar aí uma contradição nesse raciocínio?
-Admito que possa parecer assim, mas não há. É sempre a questão de termos a liberdade de irmos ao Seu encontro. Tal como disse, Deus é infinitamente justo e bom e por isso só poderia querer partilhar a Eternidade com alguém dotado da liberdade de escolher ou não ir em Seu alcance.
-Bem, tenho que dizer que continuo impressionada contigo, mas vejo sentido nisso que estás a dizer. Tenho que mais uma vez confessar que nunca tinha pensado dessa forma, mas para ser sincera, tenho que admitir que vejo sentido nisso que estás a dizer.
-Mas há mais e a verdade é que se nós não precisamos de Deus para nada quando pretendemos entender e explicar os fenómenos do Universo e da vida, bem vistas as coisas, também não precisamos Dele para nada para criarmos um corpo de ideias que igualmente nos conduzam è fraternidade entre os homens e, em conformidade, à ideia de dignidade humana e do respeito pela mesma que, por exemplo, podemos encontrar nos Mandamentos.
-Meu caro amigo, isso dito por mim não me causaria a menor admiração, mas vindo de quem disse tudo o que senhor acabou de dizer e até com a eloquência com que o fez, isso já me deixa um tanto ou quanto desconcertado.
-Mas não tem porquê, meu caro senhor e é tanto assim que o meu caro amigo, no contexto da reflexão a respeito do Homem que a ciência nos possibilita e digo-lhe que aqui não estou apenas a tomar em conta as ciências que tratam da vida em particular ou a própria filosofia, estou mais a pensar nas ciências físicas que tratam das leis da matéria e do Universo, nesse contexto, dizia, na reflexão a respeito do Homem que é possível de fazer aí, por via de questões como o lugar do Homem do Universo, o sentido da vida, por exemplo, é possível que nesse contexto sejamos capazes de desenvolver ideias, eu diria mesmo, teoria humanista, digamos assim, através da qual poderemos sintetizar lógicas de pensamento que igualmente nos conduzem ao princípio da dignidade humana e do respeito pela mesma e, nesse sentido, às ideias de fraternidade e paz entre os homens que são, afinal, pedras de toque de qualquer manifestação de pensamento religioso.
-Explique-se lá.
-O senhor veja; para mim a dignidade decorre do facto de sermos filhos de Deus, para falar no sentido em que tu falaste, podemos dizer que, por via da Sua obra, somos Seus filhos e por isso estabelecemos que somos dignos.
-Sim. Eu também partilho essa ideia é precisamente com base na mesma que considero que os seres humanos nascem, de igual modo, infinitamente dignos.
-Você aplica isso mesmo aos maiores criminosos? Como é que o faz?
-Sim, claro, mesmo a esses, até aí pode englobar aqueles que conceberam e executaram a Shoah. O que tanto eu como ela defendemos é que todos somos Seus filhos e aqui jamais poderia haver qualquer excepção. Como poderíamos justificar que uns nascessem com esse dom, salvo seja a expressão, mas serve aqui para a conversa, como é que poderíamos justificar que uns nascessem com esse dom e outros não?
-Não são os judeus que se dizem o povo eleito? Não será isso uma forma precisamente de afirmar isso mesmo?
-Isso do povo eleito é outra coisa, tratam-se de pessoas que aceitaram estabelecer uma Aliança, a Sagrada Aliança com Ele. Mas não tem necessariamente que derivar nessa interpretação que o senhor faz. É claro que isso seria matéria para outra conversa, mas tenho para mim que a ideia de povo eleito não significa ou representa uma posição de privilégio no sentido da que seria se por isso considerássemos o povo escolhido para usufruir dos benefícios da tal Aliança. Muito longe disso. Antes vejo essa ideia como a assunção da responsabilidade de ser exemplo para os outros homens daquilo que será a vida vivida no respeito pela vontade de ir em Sua procura. O povo eleito significa aquele que dá o exemplo de viver na Fé, para sermos mais simples. É uma ideia de humildade, não é um conceito xenófobo e logicamente não teria qualquer sentido que o fosse. Mas isso é, como disse, uma outra conversa.
Para aquilo de que estávamos a falar, o facto de mesmo os maiores criminosos nascerem filhos de Deus, ora o que acontece é que depois, por causa daquilo que fazemos, lá está aquilo que já dissemos da salvação depender daquilo que fazemos aqui na Terra e de mesmo um gentio poder alcançá-la na base da virtude, o que acontece é que depois, ao longo da vida, por causa daquilo que fazem na vida, há aqueles que podem estiolar essa centelha que todos nós transportamos dentro de nós e que em todos está no momento em que se nasce. Mas isso é outro problema. Seja como for, essa é, digamos assim, a forma de conhecimento que o pensamento religioso, o modo religioso de ver o mundo produz a respeito da natureza do homem que, sendo Seu filho, como já dissemos, nasce infinitamente dignos.
-E a ciência?

(continua)

4 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Não resisto a fazer-te um desafio! Já te confessaste admirador da ficção científica.

Neste parágrafo - Digamos que assim, a Humanidade, se é que pudéssemos usar esse termo para uma qualquer espécie que se nos assemelhasse, seria seguramente outra -, fazes uma afirmação com a qual não podia estar mais de acordo.

O desafio, a pergunta do milhão de €uros é: Qual Humanidade resultaria dessa "ínfima" alteração?

Recordo-me dum livro de fc em que a humanidade era gerida por religiosos que recebiam instruções directas de Deus e nisso baseavam o seu poder...

...com resultados deploráveis.
:(
Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Sim, certamente e sempre que os poderes se baseiam numa qualquer forma de verdade revelada, seja ou não religiosa e os exemplos da História são fartos a esse nível, os resultados sempre trouxeram o rasto do sofrimento e da morte.

Mas é curioso perceber como é que os sistemas religiosos –se assim se pode falar- estiveram, quasi sempre e isto para reserva de algum que me escape e não possa ser incluído em tal reunião, os sistemas religiosos, dizia, quase sempre estiveram associados a formas de domínio e controle do poder e é ainda mais curioso verificar que muitas vezes fizeram uso dos conhecimentos a respeito dos fenómenos naturais justamente como instrumentos de manipulação e de afirmação da supremacia de tais deuses sobre os homens e, por via disso, de reforço e consolidação desses centros de poder. Praticamente desde o aparecimento e consolidação que os primeiros estados trouxeram consigo todo o aparato de estruturas religiosas. Eram as previsões dos ritmos e manifestações da Natureza que iam desde as mais simples orientações no que se refere a sementeiras e colheitas, às mais sofisticadas previsões de eventos cosmológicos, como, por exemplo, eclipses e que os senhores dos templos, por serem, em grande parte, guardiães dos saberes mais relevantes da época, usavam a favor do reforço e da continuidade da sua própria importância e poderio. Daí a vulgaridade das teocracias.
Já quanto ao desafio que colocas é de difícil solução pois não se trataria de uma ínfima alteração, antes de uma alteração fundamental. Não se trataria de uma simples alteração de valores e princípios éticos, em que, por exemplo, num mundo exótico como o império romano dos séculos da que ficou conhecida por pax romana, os nossos semelhantes de antanho se dessem a comportamentos que tomaríamos simplesmente por criminosos, como o vulgar infanticídio que até era uma das formas de controle demográfico ao alcance da época. A diferença seria outra, antes de substância que não apenas em termos formais.

(cont)

Luís F. de A. Gomes disse...

(continuação)

Poderemos olhar as espécies hominídeas que nos antecederam e tentar perceber que diferenças poderiam haver entre elas e nós.
Uma de ordem fundamental, é que os mortos ficavam onde tivessem morrido muito simplesmente por não haver quem os chorasse. Isto parece pouco mas traz todo um cortejo de impossibilidade de pensamento ético que só à nossa espécie –sapiens sapiens- foi bio-geneticamente consentido e que marca a diferença fundamental entre o que poderia ser um mundo de caçadores homo erectus e um outro bando já composto pelos nossos avós.
E aqui entra mais uma curiosidade; é que tudo indica que apenas o nosso cérebro apresenta as circunvoluções correspondentes ao que se pode designar de pensamento religioso. Por outras palavras, os cérebros das espécies que nos antecederam na nossa árvore genealógica, não apresentavam as áreas correspondentes a essa actividade mental e a verdade é que a arqueologia jamais encontrou provas do contrário nos vestígios que desses seres chegaram aos nossos dias.
Será que os laços entre mães e filhos seriam da mesma ordem que aqueles que se formam em todas as populações humanas actuais? Provavelmente não, ainda que seguramente houvesse afecto.
Haveria sentimento de perda perante a morte de outrem, por mais chegado que fosse? Continuamos na probabilidade negativa que nos leva a pensar que a caça ao semelhante, o flagelo sobre o semelhante, não teriam na mente as barreiras de um pensamento ético que seguramente não existia.
As diferenças seriam portanto de esta ordem e o mundo resultante é o da lógica da sobrevivência, pura e dura, ainda que já pudessem haver manifestações que representassem a alegria de estar vivo para lá dos simples actos ligados àquela prova primacial.
E continuamos sempre no âmbito daquilo que nos espanta; é que quase se poderia dizer que a Humanidade se foi fazendo a ela própria.
Os já citados romanos, por exemplo, em cuja cultura havia uma vasta produção de pensamento no domínio da moral e da ética, não viam qualquer problema em matar um recém-nascido muito simplesmente por não acreditarem que o mesmo fosse de imediato um ser humano. É muito curioso ter isso em consideração pois, pessoalmente, uma das mais espantosas revelações que se verificam a partir de certos modelos matemáticos de abstracção que desenvolvi no contexto das investigações sobre o racismo que tenho vindo a efectuar, é justamente que nós não nascemos humanos, fazemo-nos humanos, ainda que todos nasçam com as características bio-genéticas que permitem dar e consolidar esse passo.
É pois interessante de ver que na Evolução sucedeu o equivalente; um dia surgiu alguém com um cérebro capaz de desenvolver o pensamento a respeito do transcendente e tudo indica que foi a partir daí que historicamente surgimos nós. Ora isto deveria dar muito que pensar, mas é conhecimento recente e por isso com um longo caminho à frente para percorrer.

(cont)

Luís F. de A. Gomes disse...

(continuação)

O desafio que colocas, o de imaginar uma espécie com a Fé geneticamente transmissível, teria que nos levar para outras animalidades, salvo seja a expressão, uma espécie de abelhas ou formigas que sabem o seu papel à nascença e que nascem obreiras ou soldados sem que possam fazer nada em sentido contrário pois isso está determinado pela sua biologia. No caso, todos esses seres viveriam de acordo com a procura de Deus e nesse sentido seria mais ou menos um mundo sem conflito, na medida em que sem excepção todos tomariam o semelhante como à sua própria pessoa e por isso agiriam em conformidade com a busca da Eternidade.
Nesse aspecto, creio que seria mais emocionante pensar nos mutantes. Como seria se aparecesse um indivíduo que, por defeito genético, nascesse, vamos colocar a hipótese, tal como nós nascemos, sem estarmos programados para ter Fé. Será que o sujeito teria vantagens adaptativas que o levariam a dominar os outros? Como se constituiria então o seu sistema de valores e em que se fundamentaria ou poderia fundamentar? Levá-lo-ia a reproduzir-se e a dar origem a uma nova população dominante?
Quanto a mim, este seria um desafio com muitas mais potencialidades para reflectirmos sobre a Humanidade que somos. Mas apesar de gostar de fc, e apesar de até já ter escrito fc –teatro- ainda não chegou a hora e para ser sincero nem sei se jamais chegará, para que eu me atire a uma história em tais incertas águas; pelo menos por agora, não me parece que tivesse alguma coisa a acrescentar a esse quadrante literário onde há monumentos como um Verne, um Wells, um Clarcke ou um Asimov que anteciparam futuros que hoje tomamos por banalidades deste presente. Pessoalmente, não tenho e dificilmente poderia vir a ter conhecimento suficiente para chegar a tanto.

Aquele abraço, companheiro
Luí