terça-feira, 14 de setembro de 2010

HÁ PINTASSILGOS NO MEU QUINTAL
XXII

A fresta de sombra da arcada, orlando a calmaria da transparência da superfície.

-Ó meu amigo! Eu tenho estado a ouvi-lo falar e acabo por me perguntar se dessa forma, de outra maneira é claro, por outras palavras, pergunto-me se dessa maneira você não está a repetir as ideias daqueles que falaram na morte de Deus.
-Sinceramente, não vejo como.
-Então repare. De acordo com aquilo que você está a dizer, a ilação que poderemos tirar é que as coisas aconteceram mais ou menos por acaso, não será assim?
-Está a referir-se à àquilo que disse a respeito da evolução?
-Sim, também a isso…
-Nesse caso é mais ou menos isso, sim. Quer dizer, os cientistas ainda não sabem explicar muito bem porque é que ocorrem essas transformações que resultam na evolução das espécies. Sabemos que se tratam de mutações e tudo indica que elas decorram de erros de transmissão do código genético. Mas não existe uma explicação inteligível e aceite para que isso suceda e então admite-se, se quiser provisoriamente, como é da praxe da construção do conhecimento científico, aceita-se então provisoriamente que isso possa ocorrer por mero acaso. Depois há o facto de algumas alterações serem benéficas para os indivíduos, isto é, terem a propriedade de lhes conferirem vantagens adaptativas e outras não e isso parece que acontece por acaso. Neste sentido, quando estou a falar em termos da evolução posso estar a defender que tal acontece um tanto ou quanto por acaso.
-Mas veja. Se as coisas acontecem por acaso, então não podemos dizer que tenham um qualquer sentido, em termos práticos e dito de outra maneira, quer dizer que a vida e as coisas em geral não têm qualquer sentido.
-Mais ou menos. Presumo que está a utilizar o termo sentido como querendo significar um rumo à priori, digamos assim, que as coisas teriam que ter.
-Sim.



-É isso. O Stephen Jay Gould não falava do acaso, falava antes das contingências. Aliás, ele nem mesmo se considerava um evolucionista por causa disso. Mas até nessa teoria pode estar incorporado algum factor de acaso. De qualquer forma, vendo bem a realidade, pode dizer-se que o Universo, por exemplo, não tem qualquer sentido. Nem a vida, ela própria, nem mesmo a vida do Homem têm qualquer sentido.
-O quê? Agora já não te estou a perceber. A vida do Homem não tem qualquer sentido?
-Então lá está. Está a repetir aquilo que eu disse. Então dessa forma não está, de uma outra forma, é claro, mas da maneira como coloca o problema não estará então a corroborar as ideias daqueles que defenderam a morte de Deus?
-Não, nada disso, se bem que seja capaz de admitir que assim possa parecer. Mas repito que a essa sua objecção recoloco uma negativa veemente. É claro que continuo a afirmar que, na realidade, aquilo que podemos observar é que nem o Universo, nem a vida têm qualquer sentido ou, pelo menos, no estado actual dos conhecimentos que temos, não há nada que nos permita dizer que assim seja, quer dizer, que haja algum sentido na vida e no Universo e até mesmo na vida do Homem. Repito isso. Se houvesse algum sentido que pudéssemos atribuir, mas atribuir, sublinho que é diferente de dizer que o podemos encontrar lá, pois com isso não estamos a afirmar que ele o tenha em termos de facto, mas se houvesse algum sentido que pudéssemos atribuir encontrar para o Universo, então esse seria o de que a inteligência surgisse, se formasse, não é? Mas não há nada que nos permita ir nessa direcção, nada nos permite afirmar que o Universo tenha uma evolução determinada a partir de um ponto em direcção a outro e que ainda menos que este fosse especificamente o de se formarem as condições necessárias ao aparecimento da vida, tal como a conhecemos, deve dizer-se, e, nesse contexto, ao da formação da inteligência. Antes tudo indica que o que sucedeu é que nessas inter-influências cósmicas surgiram determinadas combinações que em certos pontos –por enquanto só conhecemos mesmo o nosso planeta- mas o que sucedeu foram certas combinações que num dado lugar do Cosmos propiciaram o aparecimento da vida.
-Ai, agora não posso estar de acordo contigo. Então e nós? Que sentido para nós humanos?

(continua)

2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

"Quer dizer, os cientistas ainda não sabem explicar muito bem porque é que ocorrem essas transformações que resultam na evolução das espécies. Sabemos que se tratam de mutações e tudo indica que elas decorram de erros de transmissão do código genético. Mas não existe uma explicação inteligível e aceite para que isso suceda e então admite-se, se quiser provisoriamente, como é da praxe da construção do conhecimento científico, aceita-se então provisoriamente que isso possa ocorrer por mero acaso. Depois há o facto de algumas alterações serem benéficas para os indivíduos, isto é, terem a propriedade de lhes conferirem vantagens adaptativas e outras não e isso parece que acontece por acaso."

Já Darwin tinha notado que as variações apareciam por acaso nos animais em cada ninhada, na cor, tamanho, nas sementes, em tudo. Ninguém sabia por que razão a selecção natural se mantinha, apesar do acasalamento indiscriminado de cães, gatos, pombos... Raio da evolução que não seguia um padrão certinho. Só sabia funcionar aos saltos!
Até que, Mendel, um frade Agostinho, que gostava de botânica e estatística, começou a combinar ervilheiras de diversas cores e a apontar os resultados. Quando ele misturou ervilheiras verdes com amarelas, as que nasceram eram amarelas-amarelas, e não amarelo-esverdeado ou verde-amarelado. Mas na terceira geração, essas sementes amarelas, tanto davam flores amarelas como verdes.
As deduções que fez são, ainda hoje, as leis da hereditariedade e servem para flores, cães e homens.
Apesar de as ter publicado, em
1866, ninguém ligou às suas idiotas descobertas com as ervilhas.
Darwin morreu em 1882, sem saber que a falha maior da sua teoria estava corrigida: as súbitas alterações chamadas mutações.
Mendel morreu em 1884.
Em 1900 três botânicos preparavam-se para publicar as suas "descobertas", quando "descobriram" que Mendel, trinta e quatro anos tinha descoberto (sem aspas) o mesmo.
A biologia molecular perdeu uma geração, porque alguém não soube fazer um simples trabalho de casa.

Moral da história: Tudo acontece por acaso...
até evoluirmos o suficiente para encontrarmos a explicação.
:)
Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Tal e qual e melhor apresentado não poderia estar.

Mas vale a pena notar que o Darwin sofreu forte oposição dos poderes estabelecidos da época, particular e mais manifestamente por parte das autoridade religiosas de então e muito generalizadamente pela sociedade bem pensante da altura para quem as suas ideias e teorias eram simples heresias, quer por romperem por completo com a ideia de Criação que a ortodoxia do pensamento estabelecia como única explicação para o apareciento do Homem, quer por nos colocarem a modos que na a´rvore genealógica de outros primatas, ideia que parecia verdadeiramente bizarra e a que a imprensa da época respondeu com a gravura de um macaco com a cara do genial cientista.
Foi uma árdua luta académica e científica para que as suas teses viessem a ser reconhecidas e ainda para que fossem aceites como a melhor explicação para a formação e a evolução das espécies.
Em outras áreas, com outros protagonistas e até com outras vinganças, houve outros episódios equivalentes a esse. E certamente que não terá sido apenas neste lado do mundo de que estamos a falar.
É curioso reflectir sobre isso.

Mendel foi outro actor de tais cenários que no recato do seu convento provavelmente nem teve consciência da importância e das repercussões das suas descobertas. Mas nao deixa de ser de certo modo simbólico que tenha sido um religioso que tenha dado o contributo que referes e que, ao contrário dos mitos de origem, veio permitir perceber que somos o resultado de um longo processo evolutivo, manifestamente de acordo com as leis da própria Natureza.
Parece que não, mas a par da Revelação de Abraão, talvez tenha sido essa uma das mais decisivas revoluções no pensamento dos homens; seríamos diversos do que somos.

Se a colocarmos em perspectiva e se com isso considerarmos o de outras espécies que nos antecedem na História da nossa Evolução, aventura do conhecimento, apesar de tudo, tem sido das mais rápidas viagens que o espírito e o génio humano têm logrado.
Será que nos vamos queimar nas asas como no mito clássico? Será que sonseguremos a sabedoria bastante para manusearmos o fogo sem nos queimarmos? Essas são dúvidas que perturbam e sobre as quais vale a pena pensarmos e é justamente aí que me parece que a literatura as outras artes se encontram como fontes de conhecimento para os homens, para além de lhes saciar a sede de oinirismo e evasão que tudo aponta para que tenha surgido com a nossa espécie, o sapiens sapiens.

Vê lá bem o que o Pessoa tem propiciado. Poderá haver alguém que duvide da grandeza da obra que nos legou?

Aquele abraço, companheiro

Luís