por Abdul Cadre
Junho 02, 2011
Unindo e, simultaneamente, dividindo os povos da Terra, muitas e diversificadas são as culturas, mas apesar de algumas serem tão diferentes que se chega a pensar serem inconciliáveis, há algo de comum a todos os homens e a todas as mulheres, qualquer que seja a cultura em que se insiram: o desejo profundo de amarem e serem amados.
É esta a raiz da nossa humanidade e é por ela que nos tornamos iguais, saciados e compassivos. Teremos muitas outras características e atributos comuns, que certamente definirão a nossa espécie — por exemplo, o medo —, mas que todavia não nos distinguirão tanto quanto se julgue dos animais que nos são próximos.
Descobrir isto na escola da vida, se mais ganho nos não der, dá-nos pelo menos serenidade, pacifica-nos por dentro, faz-nos desejar um mundo materialmente próspero, socialmente justo, humanamente digno; um mundo onde reconheçamos no outro a nossa própria humanidade. Não o conseguimos ainda, mas afinal é isto precisamente que procuramos há milhares de anos. Não o conseguimos porque nos metemos por caminhos e veredas que nos desviaram do destino. Por isso, desembarcámos neste mundo organizado por poucos e para poucos, permitido pela apatia e rendição generalizada, justificado e prometido como sendo para o bem de todos. E este «melhor dos mundos» em que nos desumanizamos quotidianamente não nos deixa ser quem somos, impele-nos ao desejo, não de amar e ser amados, mas de consumir e de lucrar. Trata-se de uma doença grave, de um cancro espiritual: consumir cada vez mais, lucrar cada vez mais, usar o prazer até à anestesia dos sentidos e exaltar os sentidos até à anulação do sentimento. Que lástima!
Há quem queira explicar tudo isto com a globalização, usando para tal aquele dialecto sombrio e alienante a que alguns chamam de «economês». Tudo é subsumido à economia e os dogmas desta astrologia sem astros substituíram os dogmas religiosos do passado. Agora há só uma religião, que é o mercado, e maldito seja quem dela não for crente. Há até quem ache que tudo estaria luminoso e ungido não fora a crise. Crise? Qual crise? Aquilo a que chamam crise é um processo de obtenção de lucro como qualquer outro. Como qualquer outro, não, porque este radica numa voragem financeira nunca antes vista. Aliás, só haverá crise se a galinha dos ovos de oiro, de tão depenada e espremida, morrer de exaustão. Aí, nem com uma canjinha podemos contar.
Embora verdadeiramente ninguém nos persiga, corremos de um lado para o outro como se fugíssemos. Ou será que é o tempo que nos foge?
No nosso morrer de cada minuto, alienamos doze ou mais horas por dia em tarefas que apenas visam a remuneração que nos permita pagar contas e contas e contas, numa rotina robótica que nos corrói a própria natureza e deixa a alma exangue.
O uso da violência nos meios de «excitação social» que são os media, medido pelo share e justificado pelo lucro — sempre o lucro! — embota-nos a sensibilidade, aliena-nos a compaixão. Já não somos capazes de sentir como nossas as dores alheias. Entre a crueldade e a apatia agiganta-se a nossa sombra. Não nos indignamos nem pomos objecções a que os nossos líderes promovam guerras para o saque dos recursos alheios. Sabemos que isso é errado, mas pode ser que ajude a pagar as nossas contas. Depois, sossegamos a nossa consciência com o que de conveniência se justifique; os milhares de mortos e estropiados são apenas danos colaterais, gente que estava no lugar errado do tempo certo.
Sentimo-nos em desconforto, mas o medo pode ainda muito. Medo de que tudo piore, medo de qualquer mudança, medo de que doa, medo do amanhã, medo do de aqui a instantes. Medo do medo.
Por mais que saibamos que não há dragões, o medo de dragões é sempre verdadeiro, não nos deixa caminhar, ata-nos ao chão.
(in, Declinações de Rosa - VER MAIS AQUI)
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