por: Risoleta C. Pinto Pedro
A literatura pode ser vista como lenitivo e bálsamo, mas
também como instrumento de compreensão e
estudo dos processos psicológicos, nomeadamente os que conduzem ao suicídio e à
morte. Ou à redenção e à vida.
O bálsamo encontra-se no refúgio de um livro, no sentimento
de segurança que este dá pelo acolhimento, pela alternativa a um mundo que se
sente como hostil, pela entrada no universo imaginado e inspirador do poema ou
da ficção.
A compreensão dos processos encontra-se na análise do grito
de dor dos poetas ou escritores, mais ou menos sincero, mais ou menos fingido,
ou ainda sinceramente fingido:
Fernando Pessoa verbaliza-o como ninguém: “Que chega a fingir
que é dor/ a dor que deveras sente.“
O que distingue o suicídio de muitas outras causas de morte é
principalmente a urgência e a falta de esperança. O suicida não quer ou sente
que não pode esperar. Quer o alívio já. O ser encontra-se tão desesperado,
tanto desacredita da vida, que nem por esse final descanso ele espera. É como
se tudo tivesse de depender dele, como se qualquer alívio, ainda que sob a
forma de morte, tivesse de ser ele a auto proporcionar-se. Não admira que
esteja cansado. É demasiada carga sobre um pobre mortal. Só a vida dá bastante que
fazer. Ser-se também senhor da morte já é trabalho para deuses.
O suicida vê-se como uma ilha única num mar hostil. A
literatura mostra que o sofrimento, o desespero, o sentimento de sem saída é
vivido pela humanidade desde sempre. O cansaço é velho como o ser humano, a
rebeldia do coração universal, a impotência é humana, a incapacidade para lidar
com isso, antiga e partilhada.
O sentimento de vingança do ser humano em relação a si
próprio ou em relação ao mundo em si simbolizado, aparece denunciado neste
poema do século XV:
“Coração, já
repousavas,
já não tinhas sojeição,
já vivias, já folgavas;
Pois por que te sojugavas
outra vez, meu coração?
Sofre, pois te não sofreste
na vida, que já vivias;
sofre, pois te tu perdeste;
sofre, pois não conheceste
como t'outra vez perdias!
Sofre, pois já livre estavas
e quiseste sojeição;
sofres, pois te não lembravas
das dores de que escapavas,
sofre, sofre, coração!”
Jorge de Aguiar [Séc. XV-XVI]
É a
impaciência em relação a si mesmo, a incapacidade para viver a repetição, para
re-sentir aquilo que o fez sofrer, a ausência de qualquer tipo de
auto-compaixão, a vingança contra si. Que no limite pode assumir a
auto-destruição. Uma forma de se vingar da vida e de todos os que com ele
coabitaram o mundo e não o salvaram.
Antes, D.
Dinis censurara os trovadores provençais por não levarem o amor a sério e por
sobreporem o fingimento à sinceridade dado apenas fazerem versos na Primavera,
isto é, inspirados pelo exterior. Contrapõe
com a autêntica dor que habita o seu coração, que antecipadamente
responsabiliza pela sua morte. Podemos entender esta morte como a disposição de
um amante para ir até às últimas consequências do amor que não recusa, apesar
da dor, ou uma morte simbólica, a morte do artificialismo e da superficialidade
aqui simbolizada pelos provençais. É esta morte que lhe dará vida, visto que
ele é um guerreiro, vencedor sobre os floreados poéticos, sacerdote de um culto
sério e arriscado que é o amor. Outro nome para vida.
Proençaes soen mui ben trobar
e dizen eles que é con amor;
mais os que troban no tempo da frol
e non en outro, sei eu ben que non
an tan gran coita no seu coraçon
qual m'eu por mha senhor vejo levar
[…]
Ca os que troban e que s'alegrar
van eno tempo que ten a color
a frol consigu', e, tanto que se for
aquel tempo, logu'en trobar razon
non an, non viven [en] qual perdiçon
oj'eu vivo, que pois m'á-de matar.
Já no século
XX, 1916, em Paris, o poeta Mário de Sá-Carneiro, posterior suicida, encena burlescamente a sua morte. Um funeral
ridículo, ou uma espécie de vingança de si mesmo. Pos-mortem:
Quando eu morrer batam em
latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!
Que o meu caixão vá sobre um
burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro.
Mário de Sá Carneiro
“A um morto nada se recusa, “ ou a
esperança de que a morte traga, finalmente, aquilo de que a vida foi avara: a
festa, o amor, a atenção, a satisfação dos mais loucos caprichos. ~
Este poema e
o de Jorge de Aguiar (não o de D. Dinis), são expressões de ressentimento em
relação a si mesmo ou em relação ao mundo. O ressentimento é o que
verdadeiramente mata, é uma corda de enforcado, um veneno, um revólver dentro
do ser, uma espécie de canivete suíço auto-suficiente até para a morte. Agindo
activa ou passivamente. Rápida ou lentamente.
No poema de
Jorge de Aguiar , o poeta recriminava o coração por ser recalcitrante, por
não ter aprendido com a dor passada por não deixar de amar.
Ora o
coração sabe, melhor do que ninguém, do que precisa. E do que ele precisa,
ainda que doa, é de amar. O coração não é um simples cofre ou reservatório de
sangue, é um motor de amor.
E aqui
entramos na nossa mais remota tradição poética, aquela que igualmente dá a
palavra ao homem e à mulher, através das cantigas de amor e de amigo.
Nas de amor:
o respeito por um código, como um protocolo, a honra, a palavra.
Nas de amigo
a saudade, a espera, a emoção. Assim se completam.
Falo da
incontornável tradição cavaleiresca dos séculos XII a XIV, a ordem de cavalaria
a que obedeciam os trovadores, aqueles que estão nas fundações dos também
designados por Fiéis do Amor.
Como afirma
Pedro Martins em O Céu e o Quadrante:
“a poesia portuguesa conhece desde a sua génese, uma dimensão iniciática que a
vincula à sabedoria.”
António de
Macedo refere a mesma ordem dos trovadores, de natureza iniciática e dispondo
de linguagem cifrada, que aqueles que não aprofundaram reduzem a mero artifício
literário. Ela está cheia de referências ao «Amor cortês», à «Senhora», à
«formosa Dama Fulana ou Sicrana». Mas a
realidade não é apenas de ordem sentimental. As «Leis do Amor», rigorosas e bem
delineadas, eram verdadeiros graus de Iniciação com, segundo António de Macedo “seus
ritos, chaves e limites”:
«O primeiro
grau é o de feignaire, hesitante, ou melhor: aspirante; o segundo é o
de pregaire, postulante; o terceiro é o de entendeire, auditor;
e o quarto é o de drutz, amigo ou iniciado. Este último grau era
atingido quando, tendo chegado ao 3º grau, entendeire, o fiel auditor era
finalmente brindado com o AMOR DA SENHORA, mediante um beijo que ela lhe dava:
o osculum fraternitatis. Depois
disto ele tornava-se um drutz, um iniciado, um amigo, um
verdadeiro Fiel do Amor, servente incondicional da Domina Lux, Senhora-Luz
- e a partir de então ele passava a ter o direito de baptizá-Ia» (Aroux 1854,
461-462).
Ora este é o
caminho do um ao três. Pela união com a amada, a criação de algo novo a que se
dá um nome novo. A criação do novo que é, simultaneamente, a salvação pelo
verbo. A palavra poética.
Sendo o
suicídio, no limite, um saudável anseio, pois no fundo o que impulsiona o
suicida é a cessação do sofrimento, ou um grito de socorro, logo, algo a que
poderíamos chamar o impulso para o bem estar ou a felicidade, o problema não está
no propósito, mas no método.
Porque no
fundo aquilo por que anseia o suicida é aquilo por que anseia toda a humanidade
num universo dividido: o regresso ao Paraíso.
O Paraíso
pode ser a infância ou, recuando ainda mais, aquele momento de beatitude da
total osmose com a mãe quase Deus da gestação, onde a proteção era praticamente
divina, ou, se quiserem, podemos recuar ainda mais, a algo que não sabemos, a tal
saudade do que não conhecemos, e que o poeta porta Fernando Pessoa define no
poema “Não sei se é sonho se realidade” como:
“Ali, ali,/
a vida é jovem e o amor sorri”
Mas também ele diz:
“Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.”
Nada nos
garante que a morte, e sobretudo a violência auto-imposta da privação da maior
das dádivas, traga aquilo a que a alma aspira. Há até, quem acredite que o que
acontece é precisamente o oposto, mas não vamos entrar por aí, que não é por
isso que aqui estamos.
Ou melhor,
como canta o poeta da Mensagem, é
preciso “passar além do Bojador” se queremos “passar além da dor”, é preciso
percorrer até ao fim o caminho de dor e de dualidade, porque como afirma no
poema anteriormente citado:
“é em nós
que é tudo”
É a
expressão de uma quase omnipotência que não nos separa do mundo, mas mostra o
nosso poder interno de destruição. Ou de restauração. Sendo esta construída
dentro de nós, mas com o outro, através do poder do amor. Como os poetas
iniciados tão bem sabiam, tão bem continuam a saber.
Percebemos
assim que a dualidade está em nós e a resolução dela também.
Que o
caminho não é o do dilacerado dois recuando para o impossível e inalcançável um,
porque do passado histórico, aquele que não volta nunca mais, se é que alguma
vez existiu fora da nossa imaginação, mas o da conciliação do aparentemente
inconciliável, a ilusória dilaceradora briga, e transformando a luta de Jacb
com o anjo no abraço do tango. A transcendência é isto. Não a fuga, mas a dança
depois da luta, em que nasce um terceiro elemento a que poderíamos chamar a
Esperança, o Espírito Santo, o V Império ou o presente eterno desde sempre em potência
dentro de nós. O caminho do 2 ao três, a dualidade que, grávida, cria. Não a
que recua.
Ou, como
acreditaram os trovadores poetas, os iniciados cavaleiros fiéis do amor, a cura
está no amor, morrer por amor é matar em si aquele que quer matar-se e fazer
viver aquele que ama como quem diz fiat,
ou como quem canta. A palavra poética.
Prossigamos
com a poesia:
“Vem, camarada irmão,
Erguer sobre os meus
versos o teu canto.”
Miguel Torga (Libertação)
“Sobre os teus versos, só a eternidade.
Pobre é o meu canto.
Sobre os teus versos é que o tempo há-de
erguer as catedrais do nosso espanto.”
António Arnaut
Há nos dois poemas, quer no que serve de epígrafe, quer no
poema de António Arnaut, a alusão a dois criadores: “os meus versos” e “o teu
canto”, num caso; “os teus versos” e “o
meu canto”, no outro.
No primeiro, o canto ergue-se sobre os versos, no segundo os
versos erguem-se sobre o canto. Sobre ambos, a eternidade e as catedrais de
espanto.
A eternidade não é a morte, mas a vida. A eternidade é
erguida sobre os versos, os “teus”, os versos do poeta, responsáveis pelo
espanto de quem os recebe, espanto tornado em catedrais. Assim sendo, a
salvação pela poesia: por quem a cria e por quem a recebe. Sendo que quem cria
é, também, quem a recebe e aquele que a recebe, ou leitor, é também, de alguma
forma um co-criador com o poeta. Como bem se viu no poema com sua epígrafe.
É também deste olhar criador e libertador que fala Pascoaes.
E do seu in-verso:
“[…]
Tu gritaste,
de susto,
Olhando para
a serra:
- Que
incêndio! – E eu, a rir,
Disse-te: -
É a lua cheia!...
E sorriste
também
Do teu
engano. A lua
Ergueu a
branca fronte,
Acima dos
pinhais,
Tão ébria de
esplendor,
Tão casta e
irmã da tua,
Que eu
beijei, sem querer,
Seus raios
virginais.
E a lua,
para nós,
Os braços
estendeu.
Uniu-nos num
abraço,
Espiritual,
profundo;
E levou-nos
assim,
Com ela, até
ao céu...
Mas, ai, tu
não voltaste
E eu regressei ao mundo.
[…]”
O Poeta, o alquimista do Amor, esse que não
receia beijar a Lua, não recusou
acompanhar a amada, esteve com ela no infernal céu, esse lugar sedutor, mas
regressou ao mundo, porque detém a palavra de Amor e poder do beijo que é uma
espécie de abraço em forma de sopro, processo iniciático de alta e alva magia
que é a palavra poética, transformadora
do ardente incêndio em fresca lua. A Amada não conseguiu, ficou no Céu,
um lugar longínquo para onde fogem os que
temem e não vencem o temor da Lua incendiada no Céu. Mas não podemos
assegurar que o buscado e mítico Céu não seja, precisamente, esse incêndio. Que
se esconde por detrás da Lua.
É verdade
que os escritores também se suicidam, e temos alguns casos na nossa literatura,
no entanto não é esse seu suicídio que nos move a nós, leitores, mas esse seu
outro lugar que é o da palavra, que nunca morre, pois que dá vida a quem lê. O
imposto auto-sacrifício é um mistério que não julgamos, apenas analisamos pela
compassiva lupa que é a lua ou a palavra poética. Aquela única que os e nos
ressuscita dos lugares onde nos matamos. De onde, por ela, nós, trovadores,
poetas e leitores iniciados, nos salvamos.
O poema que
se segue, de Bocage, faz uma perfeita síntese de como o caminho da dualidade,
na sua plena consciência, conduz ao Amor. Que é a Vida. E conclui, por mim,
esta comunicação, que melhor fecho não teria.
Amor a Amor Nos Convida
Com dura e branda cadeia,
Com facho activo e suave,
De seus mistérios co'a chave,
Amor entre nós volteia:
Já deprime, já gloreia,
Já dá morte, já dá vida;
E nesta incessante lida,
Que em si traz, que em si contém,
Com o mal, e com o bem,
Amor a amor nos convida.
Bocage o
sábio mestre do paradoxo, onde reúne morte e vida e assim cria, com palavras, o
poder que tudo transcende.
P.S.: Texto de conferência da celebração do dia Mundial da Prevenção do Suicídio promovido pelo SOS Voz Amiga, no Fórum Roma, Lisboa, em 10/9/2015.