O GÉNIO
Dores Nascimento
Isaías andava desanimado com os
últimos acontecimentos. Do palheiro, nada sobrara depois de dominado o fogo,
pelo menos acima das lajes que lhe tinham servido de chão. Com restos de uma
vassoura, Isaías revolvia as cinzas, procurando nada ou qualquer coisa, nem ele
sabia o quê. Conformado com a inutilidade da busca, começou a varrer a lixarada
negra, com exasperada energia, enquanto o suor lhe escorria pelo rosto,
traçando riscas mais claras na fuligem que o cobria. Deu por concluída a tarefa
quando todas as lajes ficaram completamente a nú. Sacudiu as mãos uma na outra,
puxou de uma garrafa de água que tinha num dos vários bolsos do colete, tomou
um gole e sentou-se numa pedra a olhar para tudo e para coisa nenhuma. Amanhã
ou depois ou quando lhe apetecesse, se lhe chegasse a apetecer, começaria a
juntar materiais para a reconstrução.
Depois, desconsolado, desfocou a vista
em horizontes distorcidos por fumos, e promessas de lágrimas rejeitadas com as
costas da mão, quedando-se então a sua atenção, num desusado objeto, a meia
dúzia de passos, que parecia uma lamparina de azeite. Levantou-se lentamente,
ligeiramente espantado com o achado e tomou-o entre as mãos, cuidadosamente.
Nos sítios onde a sujidade permitia, brilhava como ouro. Estava quente,
bastante quente até. Isaías atribuíu, ainda que um pouco cético, o estranho
calor ao recente incêndio, mas, se o rescaldo ocorrera há duas noites, o
arrefecimento estaria mais justificado que o seu contrário, contudo, não
relevou este dado e começou a limpar o
achado à fralda da camisa, para lhe perceber bem a natureza. Com a fricção, a
temperatura deu em subir tão de repente, que fez com que Isaías largasse o achado ou queimaria
seriamente as mãos. Assustado, deu um passo para trás e não é que a lamparina,
ao embater nas lajes, libertou uma enorme nuvem brilhante, que descerrou a
figura de uma espécie de homem sem pernas, suspenso no ar, com um turbante na
cabeça, os braços cruzados e um bigode farto e retorcido!?
Isaías por momentos considerou a
possibilidade de estar no meio de um pesadelo, contudo a figura revelada nada
tinha de hostil, portanto pesadelo não era, quando muito um espalhafatoso
sonho, pelo menos à primeira vista.
-Uf, até que enfim, meu amigo. Isto de
ser génio, já não é o que era. Nos tempos que correm, ninguém liga importância
a lâmpadas esquecidas em palheiros.
Isaías de idade avançada, mas ainda
robusto, destemido e muitíssimo lúcido, procurava enfrentar o figurante sem dar
parte de fraco e compreender o que se estava a passar; e antes que lhe
perguntasse, já o génio lhe respondia em lufadas de palavras, o que não era
para admirar. Há quanto tempo estaria ele enfiado naquela coisa, sem poder
articular palavra ou alongar o corpo?
-Há muitos anos atrás, por razões que
já nem recordo, mas que tenho uma vaga ideia que foi por castigo, fui parar
dentro de uma lâmpada, onde permaneci uma eternidade. Depois um jovem chamado
Aladino lá me encontrou. Satisfiz desejos a uns e a outros, mas depois, quando
chegou o momento do último desejo dele, que era a minha liberdade, a namorada
de nome Jasmim, levou um pequeno coice de um burrito e desmaiou e ele na
aflição e sem pensar, gritou: Acorda-a, dá-lhe água, e leva-a para casa, enquanto eu vou ver de quem é o
burro. E zás. Três banais desejos esbanjados de uma assentada, quando só lhe
restava um. Pois bem, não foi possível contornar um exagero daqueles. Se fosse
só acorda-a, e leva-a, eu até podia assobiar para o lado e desconsiderar os
pedidos como desejos, mas a água é que
estragou tudo, mal lhe estendi o púcaro, fui sugado para dentro da minha
lâmpada para mais uma eternidade, que durou até hoje.
-Então, e não me leve a mal por
perguntar, ainda lhe resta alguma reserva de desejos para satisfazer.
- Deixe ver aqui nos meus
apontamentos, disse, consultando uma fita atada a um dos pulsos. Restam-me
precisamente dois, confere inteiramente com o que me lembrava. O saldo
disponível são dois, prémio por mais uma eternidade que passei aprisionado. O
meu amigo tem alguma coisa importante a pedir? Não hesite, oportunidade como
esta não se repetirá. Mas não se precipite. Escolha bem, e não se esqueça que
eu também gostava muito de ser gente. Com o Aladino, que era uma excelente
pessoa quase consegui, clamava o génio batendo com o punho direito na palma da
mão esquerda.
Na casa de Isaías e de Palmira sua
esposa, um pedaço de uma história paralela acontecia, narrada por Augusta.
-Procurei qualquer coisa com que
escrever, para deixar um recado ao marido de Palmira, sobre os procedimentos
para umas análises médicas, que Palmira tinha de fazer. É que a cabeça dela já
não dava conta destas coisas. Padecia há uns anos da doença do esquecimento.
Abri umas das três gavetas do móvel da
entrada, e deparei com muitos guardanapos dobrados, daqueles que saem de
dispensadores que se encontram nas mesas dos cafés. Finos e translúcidos.
Afastei-os para um dos lados, encontrei um marcador vermelho que servia o
propósito da busca e aproveitei a abundância dos guardanapos, para escrever num
deles. Reparei então que alguns tinham palavras e números escritos. Recolhi-os
cuidadosamente do amarfanhamento a que os tinha sujeitado pela busca e
sentei-me numa cadeira, com um pano sobre os joelhos, onde coloquei o curioso
pecúlio, para decifrar o que lá estava escrito.
Vários tinham Benvindos a beirais, 14
h , outros, almoço batatas com bacalhau, almoço sopa e
bacalhau assado, hoje futsal e hoje ben hur canal memória.
D. Palmira, uma senhora idosa, a quem
eu de vez em quando faço companhia e alguma lida de casa, tinha sido uma linda
mulher, a olhar às fotografias que pela
casa se vêm. A vida de D. Palmira era agora como um livro a que se vão
arrancando folhas, do fim para o princípio.
Os recados achados na gaveta, nos guardanapos de papel de café, foram
escritos por ela e a ela destinados, no tempo em que a consciência do
esquecimentos ainda era sentida, no tempo em que ela sabia que se esqueceria e
tentava contrariar essa realidade. Fiz-lhe perguntas sobre os recados,
confessou com um sorriso de inocência que parecia ser a sua letra, mas que não
se lembrava de os ter escrito. Leu todos os recados com atenção, corrigindo a
posição dos óculos para ver melhor e tornou a sorrir com a descoberta, mas com
um sorriso diferente, um sorriso conformado, um pouco triste talvez.
Conversámos e notei-lhe uma certa habilidade para rematar os assuntos,
defendendo-se para não acusar a fragilidade da sua memória. Habilidade e inteligência.
Fascinada perguntei a Palmira pelo
esposo. Respondeu que devia estar na fazenda. Mas não, tinha ido ver dos
estragos do palheiro, sabia-o eu. Ainda há um par de anos passava grande parte
do seu dia numa fazenda e essa memória encontra-se gravada nas referências de
Palmira, das idas ao palheiro, já não. O incêndio que o destruíra há uns dias,
muito menos. Observei-a com carinho, enquanto ela própria observava atentamente
as próprias mãos, buscando insuficiências nas unhas como algo de prioritário e
inadiável. Ajeitou o chapéu cinzento, adereço inseparável, tal como a chave
pendurada ao pescoço com uma fita verde da junta de freguesia de sua terra
natal, os óculos e um vistoso relógio de pulso com uma bracelete rosa vivo.
Gosta de saber as horas e constantemente acerta os ponteiros, logo que suspeita
atrasos ou adiantamentos de um ou dois minutos, apesar de não reconhecer
horários para coisa nenhuma.
Perguntei-lhe pela família, disse me
que tinha uma filha muito parecida com o pai, um genro muito amigo e um neto e
que o neto tinha uma namorada.
Com um sorriso sonhador contou-me que
fora modista e que fizera muitos vestidos de noiva. Contou-me que o marido fora
preso político em Caxias e no Porto. Sobre a idade, disse ter mais de oitenta
anos e que fazia anos em Agosto. Perguntei-lhe o que tinha almoçado, disso, não
se lembrava. Sobre uma cama de ferro de um quartinho encontra-se um montinho de
roupa dobrada. Separei a roupa para a guardar com a ajuda de Palmira, que me
indicou as gavetas dos lençóis e da roupa interior. Disse-me que o pijama não
era dela, que não era lá de casa, mas que a filha, que tratava da roupa o
trazia sempre por engano.
Sentámo-nos em duas cadeiras, à porta,
a apanhar o fresco da tardinha e várias mulheres, homens e crianças que passavam,
cumprimentaram-na pelo nome. Perguntei-lhe quem eram, respondeu que os conhecia
a todos, mas que não recordava os seus nomes. Um ou outro paravam e trocavam
com ela meia dúzia de frases, mas ela na defensiva, conseguia iludi-los com as
suas desconcertantes respostas, -Estou bem, cá vamos andando, saúde para todos.
Então comuniquei-lhe que a médica de
família lhe passara umas análises ao sangue e à urina. Análises de rotina. No dia seguinte teria de fazer xi-xi para um
frasquinho, em jejum. Concordou com um desinteressado aceno de cabeça.
Fui depois arranjar-lhe um copo de
leite, que ela bebeu com satisfação até ao fim e tornei a falar-lhe das
análises, que tornaram a ser novidade. Disse-lhe que escreveria um recado ao
marido e que depois ele ou a filha, a ajudariam a lembrar-se na manhã seguinte.
Pediu-me que escrevesse o recado num papel grande, e para o colar na porta da
casa de banho.
Entrei em casa e procurei um papel
maior que os guardanapos. Encontrei um envelope vazio e desmanchei-o. Peguei no
marcador e escrevi “Fazer xi xi , e logo fui interrompida pela Palmira com a
pergunta: O que é que quer dizer “fazer onze onze”, pois sim, Palmira, perdeu
parte da memória, mas não esqueceu a numeração romana. Complicado o
funcionamento da nossa cabeça.
Entretanto Elias regressa a casa com o
mágico escondido, mas não prisioneiro.
-Palmira, hoje fiz um achado que pode
mudar a nossa vida. Ela sorriu, ajeitou os óculos e perguntou: Então o que foi?
-Cruzei me com um génio, ou melhor com
um mágico que pode satisfazer-nos desejos. Esfregou a lâmpada e o mágico surgiu
em todo o seu esplendor, para gáudio de Palmira, que o achou muito simpático,
poucos minutos volvidos.
Querida Palmira, é como se nos tivesse
saído o euromilhões, melhor que isso até, porque há coisas que o dinheiro não
compra, por exemplo a tua memória. O génio pode satisfazer dois desejos. Um
deles é qualquer coisa boa para nós, o outro é a liberdade dele, para que passe
a ser um homem livre e se liberte definitivamente da lâmpada de que se encontra
refém.
Palmira não aparentava grande
surpresa, e trivialmente disse ao marido: - Oh Isaías, tens a cara tão suja, o
que é que andaste a fazer, por que não vais lavá-la? –Sabes, andei a limpar as
cinzas do incêndio, está tudo negro e seco. Quem nos dera uma boa chuvada que
limpasse os ares e vencesse esta seca por este país fora.
Palavras não eram ditas, e a chuva
fez-se sentir em todo o território e lá se gastou um dos dois desejos. Isaías
tapou a boca com uma mão e entre emoções, disse, - Gastei um desejo com a chuva
e agora?
O Génio estava triste com a perspetiva
que já vislumbrava: Mais uma eternidade na lâmpada. Mas, Palmira segurou a mão
de Isaías e com uma lucidez perturbadora disse, -Isaías, meu velho, a chuva é
uma coisa boa para nós, agora vamos gastar o segundo desejo noutra coisa ainda
mais importante para nós desde sempre e para sempre, a liberdade. E pediu a
liberdade para o génio.
Moral: a cura do alzheimer chegará de
forma científica, e não através de génios de lâmpadas. Contudo, os princípios e
os valores, bons ou maus, permanecem nas memórias dos portadores da doença,
porque esses não se esquecem, fazem parte de cada um de nós para sempre.