segunda-feira, 11 de julho de 2011

O Bardo na Brêtema

A música ouve-se

Por Rudesindo Soutelo(*)

A violinista alemã, Anne Sophie Mutter, numa visita que fez a Madrid com a Orquestra de Câmara de Londres no ano 2004, para um par de concertos dedicados a Mozart, foi entrevistada para o diário El País –jornal que patrocinava os concertos– e ao perguntarem-lhe pela visão que tinha de Mozart, respondeu: “Visão, nenhuma. A música ouve-se”(1).

Essa concisão verbal, sem deixar margem para ambiguidades, é talvez a disciplina que lhe permite ser uma grande intérprete em constante aperfeiçoamento e comprometida com o seu tempo e os compositores actuais, aos que estimula com encomendas para aumentar o seu repertório de concertos e recitais. Isso também lhe permite ter critério próprio e livre sobre o acontecer quotidiano e na mesma entrevista criticava duramente o novo Papa por umas desafortunadas declarações sobre a condição feminina: “ir contra um género é ir contra a humanidade, contra todos, e ainda pior quando se faz em nome de Deus, porque para mim, Deus não tem sexo, nem cor, não é homem nem mulher, nem branco nem preto”(2).

Com certeza há pessoas que podem interpretar isso como uma excentricidade de diva, nomeadamente quando o que está a esclarecer é óbvio pois todos sabem que o som se percebe pelo ouvido. Mas, refletindo sobre essa precisão linguística, deparamos que o binómio visão-audição está na base de outros conflitos. Com frequência, ouvimos referir queixas de que esta ou aquela pessoa não olha nos olhos quando se fala com ela e esse comportamento tem-se, mesmo, por uma má educação. Se a linguagem é falada, portanto auditiva, porque olhar nos olhos?

Existe uma linguagem intercorporal, não-verbal, que relaciona os corpos humanos através da distância física e do tempo num contexto cultural(3). Algo que a psicologia social tem estudado muito e que as equipas de vendedores treinam diariamente para obter melhores resultados económicos. Assim, classificam os clientes segundo o canal de comunicação dominante que utilizam, resultando três categorias básicas: visuais, aqueles que olham de frente; auditivos, os que desviam o olhar para ouvir melhor; e kinésicos, aqueles que evitam o olhar e comunicam com os sentimentos(4), categoria na que podem incluir-se muitos artistas. Basta, pois, adaptar-se ao interlocutor para não contrariar a sua comunicação.

O híper consumismo visual deformou de tal modo a audição que cada vez menos pessoas conseguem ouvir música de olhos fechados e só olham para o seu vazio interior. A diferença entre o que eles ouvem e o que ouve o iniciado –segundo nos esclarece Theodor Adorno na Teoria Estética– “circunscreve o caráter enigmático”(5) já que “a expressão é o olhar das obras de arte”(6).

O economista Jacques Attali –presidente da Comissão para a libertação do crescimento francês– num ensaio sobre a economia política da música, logo na primeira página clarifica a importância do auditivo sobre o visual com estas palavras: “o mundo não se olha, ouve-se; não se lê, escuta-se. Ouvindo os ruídos poderemos compreender melhor para onde nos arrasta a loucura dos homens e das contas, e quais as esperanças ainda possíveis”(7).
Visão, pois, nenhuma; a música ouve-se.

(*) Compositor e Mestre em Educação Artística.
© 2011 by Rudesindo Soutelo
(http://www.soutelo.eu)
(Vila Praia de Âncora: 11-IV-2011)

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(1)Ruíz-Mantilla, J. (29 de Abril de 2004). Entrevista: Anne Sophie Mutter Violinista - "Me hubiese gustado que Mozart compusiera para mí". El País, p. 37.
(2)Ibid.
(3)Poyatos, F. (1994). La comunicación no verbal I. Madrid: Istmo.
(4)Henric-Coll, M. (Agosto de 2003). Programación neurolinguística. Obtido em 11 de Abril de 2011, de www.gestiopolis.com: http://www.gestiopolis.com/canales/derrhh/articulos/63/pnl.htm
(5)Adorno, T. W. (2008). Teoria Estética. (A. Morão, Trad.) Lisboa: Edições 70, p. 187.
(6)Ibid. p. 175.
(7)Attali, J. (1977). Ruidos. Ensayo sobre la economía política de la música. Valência: Ruedo Ibérico, p. 9.

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