quarta-feira, 3 de agosto de 2011

O BARDO NA BRÊTEMA


Transcendência

Por Rudesindo Soutelo(*)

Uma sucessão de sons constrói uma melodia. Uma sobreposição de tons conforma um acorde. Um encadeamento de acordes gera uma harmonia. Uma organização de ataques e durações dos sons produz um ritmo. Tudo isso são elementos básicos e estruturantes do discurso musical mas não é qualquer sucessão, sobreposição, encadeamento ou organização que se transforma em música.
O etnomusicólogo John Blacking, no seu livro How musical is man? definiu a música –e assim intitula o primeiro capítulo– como “Sons organizados humanamente”[1]; e Bonnie C. Wade acrescenta que música não é uma coisa ou categoria da organização dos sons mas sim um processo e que este processo é sempre diferente da organização dos sons para falar[2]. É o processo que constrói a expressão musical de uma cultura e outorga determinadas características a essa sucessão, sobreposição, encadeamento ou organização dos sons.
A música é um artifício da inteligência humana e, como toda expressão artística, precisa de uma vontade de transcender, uma intenção de criar algo que reclame o nosso interesse depois de acabado. Na Teoria estética, Theodor Adorno esclarece: “As obras de arte que se apresentam sem resíduo à reflexão e ao pensamento não são obras de arte”[3].
Não ignoramos que no período de hegemonia cultural usamericana –a que vai do holocausto de Hiroxima e Nagasáqui até à queda das Torres Gémeas de Nova Iorque– a transcendência foi menosprezada, ridicularizada e posta de parte para favorecer os interesses de uma ‘democracia’ económica baseada no hiperconsumo; mas pode sobreviver uma cultura, uma sociedade que promove a intranscendência? A crise atual não é económica nem financeira, antes é a crise de valores provocada pela perda da vontade de transcender.
Numa intervenção acadêmica, na qual questionava a validez artística do pós-modernismo, fui compelido a esclarecer o conceito de transcendência e optei por fazê-lo com palavras simples recorrendo ao exemplo da gravidez. Os motivos pelos quais se chega a uma gravidez podem ser múltiplos e variados, desde algo não desejado até uma reprodução assistida, mas, uma vez que se toma a decisão de a levar para a frente, o objetivo é sempre o mesmo: ultrapassar a própria existência, deixar memória, ir além do ordinário, ser fora de si, elevar-se acima do vulgar, transcender.
Reconheço que não fui muito simpático respondendo assim a uma senhora sem filhos mas uma sociedade que não procria, dando à luz, produzindo, criando – sejam filhos, obras de arte, ou conhecimento– extingue-se vítima da sua própria intranscendência. Martin Heidegger expressa isso de um modo mais conciso e filosófico: “Transcendência significa ‘superação’. É transcendente, quer dizer, ‘transcende’ aquilo que realiza esta ‘superação’, aquilo que se mantém aí habitualmente”[4].
A queda do Muro de Berlim representou para a Europa a vontade de transformação, a recuperação da autoconfiança, da restauração duma certa transcendência e ética do modernismo; o que a filósofa catalã Rosa María Rodríguez-Magda vem identificando como “trans-modernidade”[5]. Assim como Hiroxima significou uma mudança de paradigma, outro acontecimento apocalíptico, o dia 11 de setembro de 2001, marcou uma nova forma de pensar o mundo, mas o “asselvajamento cibernético ou mass-mediático[6] –segundo aponta Rodríguez-Magda– pode impedir-nos de caminhar para o que Jürgen Habermas chama uma neo-modernidade múltipla livre de dominações[7].

(*) Compositor e Mestre em
Educação Artística.

© 2010 by Rudesindo Soutelo
(http://www.soutelo.eu)
(Vila Praia de Âncora: 28-XII-2010)


[1] Blacking, J. (2000). How Musical is Man? (6ª ed.). Seattle: University of Washington Press, p. 3.
[2] Wade, B. C. (2004). Thinking Musically. New York: Oxford University Press, p. 3.
[3] Adorno, T. W. (2008). Teoria Estética. (A. Morão, Trad.) Lisboa: Edições 70, p. 188.
[4] Heidegger, M. (1990). Qu'est-ce que la metaphysique [in Questions I et II]. Paris: Gallimard, p. 62.
[5] Rodríguez-Magda, R. M. (2004). Transmodernidad (1ª ed.). Rubí (Barcelona): Anthropos, p. 16.
[6] Ibid., p. 8.
[7] Habermas, J. (2008). El discurso filosófico de la modernidad. Madrid: Katz Editores.

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