QUANDO O PROIBIDO ERA O DEVIDO
“-Conversas de homens.”, era como os graúdos, nas tabernas e cafés, etiquetavam as linguarices que, no seu entender, requeriam que os miúdos arredassem desta ou daquela convivialidade. Bastava que os motivos fossem os comentários sobre algum adultério, geralmente definido em vernáculo, sem que se atendesse às razões de conveniência ou até um ou outro caso de quebras de honestidade no que de mais simples possam ter as relações do dia-a-dia. Aos ouvidos das crianças estavam interditos certos assuntos, não fosse a sua inocência sofrer rombos no casco ou, o que seria pior, comprometer a palavra de alguém. Quanto a este último aspecto, dava-se o caso de existirem temas de que os mais novinhos nem chegavam a suspeitar, por tão só serem abordados nas suas costas e quando andavam por longe e se por acaso uma qualquer fresta deixasse passar a mais ligeira brisa, logo os mais noviços eram severamente repreendidos por se terem metido onde não eram chamados e, sob os mais variados prenúncios de desgraças e diversas ameaças, quase sempre intimados a calarem-se e esquecerem o sucedido.
Certa noite, dando conta de uma discussão em piano entre os meus pais, apercebi-me que o meu ganha-pão fizera algo proibido e que, segundo os reparos da minha mãe, poderia pôr em risco o conforto de toda a família. O susto induziu-me a querer saber mais, mas se o homem me explicou que aquilo não me dizia respeito pelo que me deveria omitir sequer das lembranças, em a madre encontrei um muro feito da crua promessa de me dar um par de estalos se voltasse a referir-me àquilo, fosse onde fosse e com quem quer que fosse. E ponto final, pois de contrário logo ali me seriam adiantadas as primeiras prestações. Só muito depois do último inquilino ter podido abandonar o exílio nas garras da polícia política, eu vim a saber que o paizinho oferecera dinheiro para que um jovem conterrâneo, implicado no assalto ao Banco de Portugal, na Figueira da Foz, perpetrado pela LUAR, pudesse aproveitar a saída precária para assistir às exéquias do progenitor e desse o mergulho numa fuga para a Bélgica.
Maior foi a surpresa em torno da prisão do meu avô João que, por sinal, até era um admirador do trabalho do consulado do Professor Oliveira Salazar.
“-Não, não, menino.” –De imediato o barbeiro me corrigiu a perplexidade que instantaneamente atribuíra o castigo a uma conduta menos digna por parte do velho e que, a meus olhos, era de todo impossível. E, tesoura na mão e pente na outra, na realidade ele não fez qualquer compasso de espera. “-O seu avozinho foi preso político. Já há muitos anos.” –Executando um gesto largo. “-Era o seu paizinho um moço. Então o menino não sabe?” –Corriam as primeiras translações em liberdade e ainda eram frescas as tardes em que quase toda a gente falava de política.
Mestre Eliseu é uma daqueles homens que sempre trabalhou só, prenhe de diacronia para cogitares que são interrompidos pelos saltitares de converseta em converseta com um ou outro cliente, ou nos círculos matinais que na sua loja bebem o desportivo. Não se coíbe de falar mal dos outros e de rogar pragas àqueles de cuja cara não gosta. Tirando uma marotice em que, já viúvo, se metera com mulher alheia e de que eu sabia por portas e travessas que aqui não vêem ao caso, tirando isso pode-se dizer que nunca fez mal a alguém. Mas também nunca foi pessoa de ajudar outrem. Para ele, cada um trata de si e, em conformidade, sempre viveu de casa para a barbearia, para que aos seus não faltasse o alimento e o agasalho. Aos Domingos ia, uma vez por outra, ver futebol e quando vinha o calor gostava de nadar no rio. Saía em excursões que de resto era o que conseguia ver no cinema e no palco da principal colectividade da terra.
Eu não sabia dizer se ele estava a dar mais uma das suas injecçõezinhas de fel, mas há muito que sabia ter ele sido, por muitos e bons anos, o último barbeiro do avô João, a casa de quem, todos os dias, antes de abrir a porta, se deslocava para fazer a barba e, quando se impunha, aparar o cabelo. Certamente sabia do que estava a falar e os detalhes com que me narrou o episódio, deixavam antever que muito do material vinha directo de desabafos do próprio intérprete. Na verdade, o que de imediato expôs até era lisonjeiro para o mau ancestral. No entanto, quem não deve ter tido quaisquer considerações do género foi o barbeiro, mortinho que estava por contar.
Assim soube que no dia em que a Alemanha assinou a rendição, a alegria popular explodiu de tal maneira que, coisa nunca antes vista, mais de uma centena de pessoas se juntaram em frente da “Vélhinha”, onde anteriormente tinham escutado notícias pelos altifalantes com que, ao Domingo, os directores possibilitavam que o rádio da colectividade falasse para o exterior. Por entre vivas aos aliados e à liberdade e gritos pela democracia, depois de discursos e mais propostas e contra-propostas, já com bandeiras nacionais e panos negros, decidiu a massa dirigir-se a pé até ao Barreiro, onde, diziam, deveria juntar-se a outra manifestação que saíra para a rua a partir das fábricas da CUF e do Caminho de Ferro. Quem não gostou da ousadia foram os homens afectos ao regime e –diz-se que um industrial, à época, o chefe dos legionários e que se orgulhava de ter sido um dos Viriatos na guerra civil de Espanha- algum deles alertou as autoridades que, em acto contínuo, deram a resposta. Já se gritavam morras ao Salazar quando a mole se preparava para abandonar a vila onde, sem aviso prévio e sem olhar a quem, a guarda a cavalo caiu de sabres e coronhas sobre as pessoas, ferindo umas e prendendo outras, originando precipitações pela lama ensanguentada e voltas atrás na rota de passagens à clandestinidade. Aquele dia de juízo fez com que houvesse quem apenas à noite tenha abandonado as morraceiras para regressar a casa e nas semanas seguintes esteve a localidade ocupada pelos militares e submetida a recolher obrigatório.
Obviamente que o meu avô nada teve a ver com aquilo. Ele nem saiu de casa e muito menos instigou ao mínimo bulir de uma palha. Mas como nunca escondera as suas preferências pelos ingleses e os aliados e desde a reviravolta no curso dos conflitos que, por vezes, deixava que muitas pessoas fossem à sua cozinha escutar a BBC, quando se tratou de encontrar um possível cabecilha para o desacato, diz mestre Eliseu que um certo ranhoso tratou de se vingar por o Hitler ter perdido a contenda. O mal entendido foi rápida e facilmente esclarecido e o senhor João pôde regressar à sua vida de sempre. Mas nunca se conformou pela humilhação que sofreu por ver a sua casa revolvida, com criadas e penas a voar. E a solução foi atirar a pedra para o fundo do poço que nem o meu pai se atreveu, alguma vez, a abrir.
Eram os silêncios de outros segredos impostos.
No entanto, sempre me permaneceu na memória a figura do Carlitos, o filho da Dona Cristina, amiga de minha mãe que, dados os azares, vivia a expensas de seu pai; jamais olvidei os olhos sem brilho do Carlitos que todas as tardes, sempre à mesma hora, nos batia à porta munido de um jarro onde levava batidos de fruta que em minha casa se faziam para que ele os levasse ao seu pai que, no leito, estava desenganado dos pulmões. Nos dois ou três meses que durou o padecimento, sempre a minha mãe se lamentou por aquele anjinho, mas igualmente manteve de fora a razão da doença. Quando o nome daquele homem foi dado a uma rua, precisamente aquela em que nascera, entendi que tinha sido a PIDE que o devolvera à família para que aí desse o último suspiro.
Alhos Vedros, 14 de Maio de 1998
2 comentários:
Malhas que o Império tece!
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.
Na minha meninice também havia "conversa de homens", embora também fosse frequente "isto é "conversa de mulheres"...
...o que quer dizer que o nosso espaço de conversa, sempre pelos melhores motivos, ficava reduzido a um pequeno espaço...
Lá longe, em casa, há prece:
Que volte cedo, e bem!
Abraço,
António
Malhas sim e que férreas elas eram, tecidas também e retorcidas, mas não pelo Império -ainda que então houvesse- antes pelo Fascismo que dele tomou conta e o abafou com as desconversas que afinal impôs, tanto a homens como a mulheres.
Para que não sejam esquecidos aqueles por quem as preces que tanta forma assumiram de raiva e revolta escondida, davam ao "volte" a forma de saída da prisão, das prisões de onde e não foram poucas, por vezes se saía para o último suspiro, depois de consumido o corpo pela pancadaria da tortura que a alma, essa, não menos vezes permaneceu livre, livre, livremente livre, corajosamente livre e digna.
Para que não se esqueçam esses tempos, esses meninos injustiçados, filhos daqueles que se levantaram com um não na mente e nos braços, meninos que nunca jazeram mortos, nem arrefeceram, tão simplesmente porque os lembramos e isso para que a memória se não apague e não sejam olvidados, muito menos branqueada essa noite em que aquilo que era, sempre foi e continuará a ser devido, permanecia proibido.
Poderia ter dedicado este quadro à memória de todos aqueles que, nesta pátria madrasta, norreram sem terem tido tempo para contarem uma das páginas negras da injustiça. Contudo, tomei por preferível deixar essa homenagem à vontade dos Leitores.
Tenho a certeza que todos entendem que a luta contra o esquecimento é um dos tijolos em que podemos alicerçar a civilização de um mundo mais justo.
Aquele abraço, companheiro
Luís
Enviar um comentário