CIDADÃO DE CORPO INTEIRO
Foi com todo o orgulho que a adolescência consente que eu esperei a chegada da funcionária e dos autarcas da Junta de Freguesia para efectuar o meu recenseamento. Cedo aprendi que nos cabe a dignidade de zelarmos pelas nossas vidas e, naturalmente, nunca entendi porque eram vedadas as possibilidades dos cidadãos responsáveis pretenderem tomar em mãos os destinos das coisas públicas, devendo os restantes dizerem de sua justiça qual deles o melhor. Por isso me alegrei com as perspectivas democráticas da manifestação dos cravos com que o povo recebeu os militares que deram cheque xeque-mate ao Estado Novo e, alguns meses mais tarde, mal me apercebi do desprezo com que a extrema-esquerda olhava essas questões, logo me apeei dessas composições de militância política, passei a formular os meus pensamentos e as minhas opções a partir de outros quadrantes. Com efeito, embora jamais tenha abraçado uma linha política definida, sempre me vi como um democrata e em conformidade tenho procurado agir e, por via do estudo e reflexão, reforçar e consolidar, sob esse ângulo, os meus pontos de vista. À data do primeiro recenseamento depois de Abril, estando eu em idade apropriada, foi com um sentimento de honra que fui a primeira pessoa a sentar-se nos degraus de entrada do edifício da Junta e é com garbo que hoje posso ostentar o número vinte e oito no meu cartão de eleitor, sabendo que antes de mim, nos cadernos, apenas constam os nomes das pessoas e respectivos familiares que, à época, asseguravam o funcionamento daquele organismo.
O mesmo fulgor no peito repetiu-se quando estreei meus olhos a verem o meu voto entrar pela ranhura da urna. Exactamente quando isso aconteceu não o saberei afirmar só pelo uso da memória; teria que recorrer à observação dos registos históricos da matéria. Mas sei que interiormente sorria de contentamento enquanto esperava a minha vez e nem o voto em branco diminuiu o júbilo e a interpretação da importância do acto e recordo-me que, no regresso a casa, senti-me tratado pelos meus botões como um homem. Nem quando recebera o meu primeiro salário eu tivera uma ideia igual. É evidente que logo esbocei um sorriso e encolhi os ombros que outros atributos não faltariam para que me pudesse considerar um homem, mas imediatamente apreendi aquela data como um marco simbólico da minha entrada nos assuntos do mundo adulto. Até ao momento, nunca descortinei as razões para alterar a fronteira. Finalmente eu era chamado a materializar a minha quota de propriedade do estado e também eu podia indicar quem gostaria de ver a gerir os negócios. Isso era ser homem e, relativamente ao meu pai, senti um enorme privilégio.
Não era a primeira vez que eu participava em votações públicas. A começar pelas experiências das reuniões gerais de alunos que, ao tempo dos governos provisórios, paralisavam os então ainda liceus –num dos quais eu estudava- e escolas comerciais e industriais, onde votara greves e protestos e reivindicações de braço no ar, ou expressara apoios por voto secreto para as direcções das associações de estudantes e os representantes discentes aos conselhos directivos, mas também nas algazarras das reuniões de moradores, invariavelmente de forma directa e tantas vezes entre apelos e apupos de última hora, também nessas magnas assembleias eu exercera os meus direitos de gaiato com quinze anos. E em todas essas ocasiões tivera já o ensejo de aderir ao lado dos vencidos.
Fosse como fosse, aquela tinha sido para mim a minha primeira votação séria e na altura pensei assim, a única em que aquilo que estava em causa era a valer.
Olhando para trás, agora revejo em outra ocasião a primazia, quanto ao grau de importância, entre as votações em que participei, curiosamente assinalando também a minha preferência pela ala derrotada da disputa.
Tratou-se de uma assembleia geral para a eleição dos corpos dirigentes de uma colectividade da vila, por sinal, a mais antiga e prestigiada.
Desde o fim de setenta e quatro que as direcções eram cozinhadas em reuniões partidárias e que as listas afectas a um partido ganhavam, compreensivelmente, devido ao maior número de sócios simpatizantes daquela corrente, de resto eleita em toda a autarquia por fortes maiorias absolutas. Mas o problema era que nesses três quatro anos subsequentes, a sociedade mais se parecia com uma coutada partidária e no que dizia respeito às missões para com os associados, até entre os acólitos era notório que muita coisa estava a ser deixada por fazer. Não havia memória de algum sócio impedido de avaliar o trabalho dos órgãos directivos e, como não podia deixar de ser, apareceram os rostos para o descontentamento. Os bailes tinham acabado, havia retratos de Marx e Lenine nas paredes, o grupo de teatro e a comissão cultural tinham que produzir realizações politicamente correctas e, como se sempre tivesse sido assim, as instalações abriam-se para todo o tipo de associações que as solidariedades com o mundo socialista vieram a dar corpo. Era demais e comentava-se que um sócio prestigiado tinha visto recusada a cedência de uma sala para uma reunião de empresários locais. A resposta veio de um grupo de velhos nomes da casa, a quem um movimento de abaixo-assinado veio propor para encabeçarem uma alternativa que devolvesse a instituição ao recreio e instrução de todos os associados. Os nomes da lista eram de peso e pela primeira vez foi apresentado um programa escrito que as boas vontades promoveram junto das residências dos confrades e, pelas reacções que iam obtendo, tudo parecia indicar estar próximo o fim daquele curto período que seria melhor esquecer. Eu e outros jovens que frequentávamos a sede por, em parte, ali termos sido criados, deixámo-nos iludir pelo desejo e começamos a festejar a vitória antes de tempo.
A ilusão apenas durou até ao momento em que entrei no pavilhão gimno-desportivo para participarmos naquela assembleia geral. A raiva que senti foi tanta que, reconhecidamente batido, ao levantar-me para votar nos meus candidatos, quase que as lágrimas me saltaram pelos olhos.
Nas primeiras filas, num dos lados da formação de cadeiras alinhadas de frente para uma mesa com a bandeira da colectividade, os idosos do Lar da Santa Casa da Misericórdia, também ela dirigida pela mesma cor de sectarismo político, tinham acabado de fazer pender o número de votos para o lado da direcção que ali estava para renovar o mandato.
Alhos Vedros, 17 de Maio de 1998
2 comentários:
Lembro-me muito bem! As primeiras eleições em que votei foi para a Assembleia Constituinte em 25 de Abril de 1975!
Vesti o meu melhor fato, gravata incluída, porque o momento era solene. Tinha então 32 anos!
Portugal era um livro em branco onde cada português podia contribuir para escrever a sua história...
...Era essa a minha, nossa esperança!
Que começou a ser traída não sei a partir de que altura...
Abraço,
António
Não seria esse o propósito deste quadro, mas pode ser essa uma conversa a ter a partir do mesmo. A esperança traída; será que o foi? Quando e porque terá sucedido? Muito haverá a pensar a partir daqui e, para já, apenas registo o quanto me entristece partilhar a tua opinião.
Nessa primeira eleição não tinha idade de voto, mas também recordo a alegria que vi em todos aqueles que pacientemente esperaram, em longas filas, esse momento -mágico?- de ver o boletim depositado na urna. Finalmente foram cidadãos de corpo inteiro.
Gostei da imagem do livro em branco, pois deixa bem claro aquilo que veio a suceder; foram falsos e mesquinhos os escribas que lhe lavraram as páginas. A dúvida que ainda pode restar, é se o fizeram por serem medíocres ou por impulso da ganância. Pessoalmente, não me parece que esta seja muito difícil de resolver.
Remar contra a maré, é o trilho para que não há alternativa.
Aquele abraço, companheiro
Luís
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