O VISGO E A REDE
À
Francisco José Gonçalves
Mais de dez anos passaram sobre um conto em que lhes referi a minha antiga qualidade de armador de pássaros. (*) Então limitei-me a descodificar aquela expressão e escrevi que não era o momento de lhes falar das minhas aventuras. Tratava-se de apresentar um certo indivíduo e o a propósito daquela referência foi para que o querido leitor entendesse a autoridade de um testemunho pessoal a respeito do mesmo. A história continuou, foi concluída e eu nunca mais pensei no assunto. Pois é chegada a hora e eu quero agora contar-lhes um episódio que sucedeu no decurso da minha carreira de predador.
Bem, talvez seja de bom tom esclarecer que hoje em dia muito dificilmente voltaria a repetir tais acções, pelo menos ao nível dos motivos. É certo que, com apenas uma excepção, o objectivo era a captura de asas para gaiolas. Em nada molestávamos uma pena que fosse e, no cativeiro, tudo fazíamos para que as criaturas estivessem bem alimentadas e nas melhores condições possíveis. No quintal do Chico, construímos um viveiro cujas dimensões permitiam aos mais irrequietos desentorpecerem e cuidávamos para que a densidade populacional fosse habitualmente pouco elevada. Mas só a ideia de furtarmos as avezinhas à liberdade que Deus lhes deu, nesta fase do meu crescimento, só isso me causa náuseas e seria suficiente para me levar a ficar quedo. Poderia ainda acrescentar outras razões para a recusa actual, no entanto devemos compreender que tudo começou pela meninice, por via da transmissão cultural e, além disto, aquele género de preocupações não faziam parte dos discursos dessas idades.
Com efeito, a coisa começou, para mim, por volta dos doze treze anos de idade. Eu armava em conjunto com o Luís Carlos e o Francisco José, aliás os responsáveis pela minha entrada na arte. Para eles, o início datava dos tempos da escola primária e quando eu me juntei, como aprendiz, é fácil de ver, já os meus sócios se tomavam como veteranos. Procedíamos à recolha para o nosso contentamento e para ofertarmos aos amigos, mas também tínhamos instintos empresariais e a maioria dos exemplares eram vendidos a particulares, apesar de, em uma mão cheia de ocasiões, termos tentado mercá-los com uma loja do ramo que havia no Barreiro. Imaginem gaiolas embrulhadas, com os pássaros a darem acordes e a esgravatarem, entre nós, no comboio, connosco a falarmos alto para tentarmos ocultar a matéria que transportávamos. Isto é um aparte, mas a verdade é que formávamos uma sociedade. Dividíamos equitativamente as despesas e no final de cada época que mais ou menos coincidia com o dealbar da invernia, repartíamos os lucros que sobravam depois de todos os custos estarem cobertos. Naturalmente, a mão-de-obra também era justamente repartida entre todos.
Era um vício, como diza o Chico, acordar cedo para que a aurora nos encontrasse prontos a esperar os incautos, camuflados em arbustos ou valas e canaviais, nem um agulha bulindo, para que estivéssemos atentos às chegadas e nos pudéssemos aperceber das aproximações que nos interessavam. E não era só a capacidade de engenho que viciava, era também a tranquilidade e as despreocupações associadas ao estar ali expostos à frescura da terra e da manhã, a que se associavam as disputas entre os candidatos e as chamas que enchiam a lezíria de trinados e piares vários.
Quem nunca armou não sabe do que estou a falar e nem deve perceber o sentido dos termos usados. Eu esclareço. Há diversos métodos para a captação ornitológica e cada um deles terá as suas variedades formais. Fundamentalmente existem três grandes tipos. A apanha feita através de ratoeiras, uma outra com o uso de uma rede e finalmente aquela que implica a utilização de visgo. Da primeira que se destina a matar os animais para fins de tacho, não vou falar. Até pelo simples facto de nunca a termos praticado. Quanto à última, consiste em envisgar cabelos de piaçaba e prendê-los a uma ramagem que depende da espécie visada; só para dar um exemplo, para os tentilhões é aconselhável uma pernada de oliveira. Empina-se o galho em sítio que sabemos ser batido pelos cantores alados e com o auxílio de chamarizes e se também de negaças, não fica mal, é procurar que os livres se entretenham com os cativos e esperar que poisem na armadilha de cola e depois ser rápido e ágil a deitar a mão sobre o esforço das asas bamboleantes e pernitas bêbedas que remetem a fuga para um varejar pelo chão. Há quem use este processo em complementaridade do que falta e era isso que nós fazíamos. A armação com a rede é mais complexa e trabalhosa. Consiste em camuflar uma rede de malha minúscula que se reparte em duas secções, convenientemente enroladas e dispostas de modo a formar um quase vértice triangular. As extremidades estão estacadas, assim como tudo o resto que não sejam gaiolas e ervas e arbustos alapantes, e as duas pontas de base estão ligadas a dois paus, unidos entre si por uma corda que depois de se unificar da bifurcação em v, se estende até à mão daquele que executa o puxo com que as muletas se erguem para permitirem, caindo em direcção oposta que as redes se abram e caiam, uma sobre a outra, envolvendo e aprisionando o que esteja por baixo. A fim de a passarada escolher aquele local de descanso e repasto, usa-se uma negaça e chamas. As segundas são aves reconhecidamente boas intérpretes que ali depositamos em gaiolas –se estiverem envolvidas em lenço branco ainda cantam melhor- devidamente escondidas com vegetação, preferencialmente, componente da dieta alimentar dos alvos. Têm como função chamarem quem anda voando. A primeira é um pássaro que deve ser treinado para estar sobre um poleiro e em que se coloca um colete de fio que se prende a um pequeno patim que é possível movimentar com o auxílio de um cordel, levando o funcionário a simular que esvoaça rente ao chão. Logicamente, com isso se visa atrair e enganar os outros. Em qualquer das duas últimas metodologias que acabei de abordar, é necessário saber fazer as frentes, operação que resulta em manter ou em levar os bandos no caminho do isco sem que aqueles olhinhos topem a presença humana.
O segredo consiste em ter paciência para que, quando em grupo, todos os viandantes estejam no interior do triângulo fatal e mal isso seja conseguido, puxar o mais forte e rapidamente possível e correr para a rede, não vá algum conseguir escapulir-se por uma qualquer nesga que o acaso tenha deixado em aberto. Depois é só agarrá-los e enfiá-los nas cadeias.
Aquilo que seria a nossa medalha de ouro, isto é, o nosso melhor puxo, acabou por ser um fiasco.
Nós já tínhamos ouvido falar em bandos disto e daquilo, a nossa inocência levava-nos a acreditar em mais de cem pintassilgos. Acontecia é que jamais víramos tão fartos ajuntamentos. Mas uma dada manhã, conseguimos contar vinte e poucos prontinhos para a facturação. Tudo tinha sido feito a preceito. Eu fizera uma frente exemplar e o Chico um trabalho com a negaça digno de um mestre. As gargantas engoliam as salivas quando, depois de, gestualmente, termos confirmado entre nós o número e a posição certa, o Luís Carlos se preparou para esticar repentinamente a corda. Zás, estava tudo apanhado.
“-Hoje vamos almoçar fora.” –Gritou o Chico enquanto corria a rir para a rede. O entusiasmo era de tal ordem que, a dois passos, ele se atirou para aquilo como se de uma piscina estivéssemos a falar. A consequência foi que ficou enleado nos fios e malhas rotas e o que eu e o Luís vimos foi um corrupio de asas e penas no ar, precipitando-se na fuga que o acaso lhes abrira. Nem as chamas ficaram para contar a história e a negaça não deixou as algemas no local.
Amieira, 15 de Maio de 1998
(*) Sorumenho, Sebastião
O VARREDOR
In "HISTÓRIAS DA MARGEM SUL"
Nota Introdutória do Autor
Dactilografado, Alhos Vedros, 1987
4 comentários:
Engraçado como as palavras resistem ao tempo e cumprem uma missão que sabem desempenhar muito bem, a de preservar memórias. Mais de dez anos passaram até que se grafasse parte da história pela primeira vez; mais de dez anos até que se escrevesse a estória de vez; e mais de dez anos até que se (re)publicasse a história outra vez. E, depois, dez anos é muito tempo, quanto mais...
Francisco José Gonçalves foi um amigo e parceiro certo, e como vou ouvindo amiúde dizer desde aí "que Deus guarde a sua alma em descanso."
A ti "graças a Deus" que ainda te tenho comigo.
Aquele Abraço,
Luís Carlos
Francisco José Gonçalves, o Chico, o filho de Delmiro e de Branca, homem que se finou jovem e livre da maldade, irmão de risadas e aventuras, é agora um Anjo que nos quis deixar o exemplo do seu coração grande, do tamanho que só o Mundo tem.
Ainda sou capaz de reconstruir, de olhos fechados, a primeira casa que lhe conheci e onde vivia com os pais e onde cresceu e se fez moço – a grosso, pese embora o fininho que era – e ainda onde se escreveu uma daquelas páginas de que a vida é farta, a do trabalho e da dignidade que, no seu caso e na sequência do daqueles que lhe deram vida, se fez da vontade de por esse meio singrar no seu percurso de vir a legar ao filho que ainda teve tempo de fazer, um caminho mais leve e digno que aquele que teve que enfrentar e que, por sua vez, já tinha avançado um degrau em relação aos de Delmiro e Branca.
O Chico, nosso irmão, cuja memória me leva a pensar o quanto é de estupidez e ganância, cegueira e imoralidade o sinal dos tempos que passam, em que o despudor de uma minoria privilegiada e cleptómana se quer apropriar de tudo, sem cuidar de se importar que aponte para um cenário em que muitos outros Chicos virão, condenados, se não a viverem em casinhas de terra batida, nas ruínas dos tectos para baixo dos quais se está hoje atirando a miséria de volta. O Chico, nosso irmão, cuja memória me leva a pensar que os muitos outros Chicos que virão também nascerão dignos o mesmo é dizer, merecedores de todo o respeito de um dia quererem escolher um caminho, com liberdade, com o uso pleno dessa dádiva que é o livre arbítrio, de escolher a sua vida, o mais agradável de que sejam capazes, sem o sofrimento da uniliniaridade que a ausência imposta de condições de escolha seja o único trilho possível nos seus dias. O Chico, nosso irmão, cuja memória me leva a pensar que nesta passagem tão curta que a todos é dado gozar, nesta nossa casinha comum, o que mais importa é que não façamos mal a quem quer que seja, o mesmo é dizer que sejamos capazes de viver com o sentido de evitarmos a injustiça, pois sempre será possível reparar muitas das injustiças que se cometem por esse mundo.
Para mim, é esse o sentido de O trazermos, no coração, sermos Ele e por isso é esse o norte do caminho que devemos escolher nesta vida. Mas há muitos irmãos que não são religiosos e que por isso terão outros pressupostos que logicamente devemos aceitar, mas não será por isso que estará aqui alguém a querer impor o que quer que seja e assim digo contigo o voto que expressas, ciente que também partilhas a certeza de que estará agora no Seu regaço.
O Chico, nosso irmão, é a memória de um tempo que, naquilo que teve de injustiça, queremos que fique gravada, precisamente para que tenhamos como dizer porque não mais deve voltar e como clamar para que seja erradicada onde teima em persistir.
Ainda nos temos, Louvado seja Ele e agora estará o Chico a rir, Lá, onde está, dizendo para si o quão feliz o faz saber que precisamente ainda nos temos e até ele, ainda nos tem, Graças a Deus, aqui nesta Terra, este calhauzinho tão maravilhoso que em terceiro lugar está, a contar do Sol.
Aquele abraço, companheiro de vida
Luís
É bom ter memória...
...melhor é ter amigos!
abraço,
António
Pela primeira mantemos os segundos vivos, por estes alimentamos o melhor da memória. São eles então o que mais importa.
Aquele abraço, companheiro
Luís
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