AS FESTAS DAS MORÇOAS
O senhor Madeira era um poeta. Escutei-lhe várias peças da sua autoria e, inclusivamente, guardo na memória um poema que ele dedicou a uma das minhas irmãs, por ocasião da expressão pública da paixão dela por aquele que veio a ser meu cunhado. Não sei se a sua obra é vasta e se daria para dar corpo a algum livro e muito menos tenho conhecimento daquilo que os filhos possam ter feito ao espólio que, certamente, deixou. A verdade é que todos o viam tal como o defini e sempre que ele era alvo de comentários, dessa forma era distinguido para se saber de quem se estava falando. E o homem correspondia-lhes às expectativas. Quando estávamos na sua presença facilmente dávamos conta de ser uma pessoa diferente, não só pelo cuidado com que harmonizava as suas indumentárias com as situações do quotidiano, também pela linguagem e gestualidade com que respondia às solicitações mais diversas, sobretudo pelas atitudes de que se permitia, aqueles seus passarinhares pelos canteiros que ele, por moto próprio, prolongava pelas ruas que ia enchendo de borboletas. Sem embargo, melhor seria dizer que era um artista, pois a sua propensão natural para as coisas das letras e das artes, não só o levaram a escrever e encenar e ensaiar teatro como, também, a representar papéis em que, muitas vezes, conseguia elevada densidade lírica. Fossem os casos do âmbito da cultura e lá estava ele, como o responsável com que todos naturalmente contavam e, por mais novo, não havia sócio da maior colectividade do burgo que não soubesse que os serões eram maioritariamente organizados por ele. O senhor Madeira fundou e dirigiu o rancho etnográfico daquela sociedade e, ano sim ano não, repartiu com o senhor Fernando Rosa que era desenhador e também gostava de pintar com as palavras, a responsabilidade directiva pelo bom andamento da biblioteca e as actividades que aí tinham lugar e eram muitas, das sessões de leitura aos recitais, ou do destaque dos livros e exposições aos colóquios sobre variados autores.
E era alguém cheio de alegrias e rasgos de humor, de riso fácil e frontal que geralmente encarava as contrariedades com ânimo de as resolver. Por vezes vociferava e zangava-se com os mais novos, especialmente quando estes lhe baralhavam os tempos e punham em causa prazos e compromissos. “-Porra! Que na minha terra é uma cebola.” –Gritava ele, dando-se, ao mesmo tempo, à canseira de apresentar um rosto de espantar pardais e que, particularmente nas raparigas mais acanhadas, causava o susto necessário a que tudo voltasse a correr bem. No entanto, todos sabiam que era sol de pouca dura e a regra era conviverem satisfeitos até com os arrufos e as birras do criativo, mais que não fosse, pelo respeito que lhe tinham. Entre os mais velhos, nem mesmo os mais rudes ousavam caçoar da figura e, uns mais por uns motivos que outros, não havia alguém que lhe desdenhasse o trato ou a companhia.
O senhor Madeira tinha vindo muito novo da serra algarvia, chamado para trabalhar na fábrica de um parente que há anos se lançara na prensagem da cortiça com que fizera casa e fortuna, depois de ter começado como rapazola aprendiz nas compras do mato, em que ganhara a experiência e a sabedoria que o levaram a singrar na vida. Ora o senhor Madeira, como tantos outros rapazes, da mesma idade, cheios de dificuldades para encontrarem um ganha pão indígena, imitou-lhes os passos e, abandonados os bancos da escola, após um par de revoluções atrás de um balcão de mercearia, lá veio ele, no pouca terra, na busca da aventura de alcançar um amanhã melhor. Rapidamente se apercebeu que aquilo de dar cortiça à banca não era o caminho da felicidade e como era moço de virar o boi do avesso, atirou-se com unhas e dentes à instrução nocturna e quando chegou às vésperas de entrar na tropa, andava já no instituto comercial que entretanto concluiu e a partir do que ascendeu a guarda-livros da fábrica que entrementes ia crescendo. O gosto pelas leituras e a divagação era anterior a isso e o avolumar da instrução apenas lhe possibilitou dar àquelas uma maior consistência, fazendo com que o seu detentor acabasse por chegar a ser um idoso com sólida cultura. Talvez por isso ele tenha encantado a professora primária com quem constituiu família e, de certeza que também devido a isso, criou três encantadores filhos com muito carinho e atenção e o bom senso e a sapiência que deles fez gente de bem.
Infelizmente o senhor Madeira não partilhava os discursos que, no período revolucionário de Abril, apontavam como necessária a morte dos patrões e a apropriação dos meios produtivos pelos explorados, como na circunstância se falava. Isso valeu-lhe a destituição dos seus cargos na colectividade a que dedicara a vida e a pura e simples proibição de encenação de “Um Barco Para Ítaca” –teatro burguês e reaccionário, dizia-se- com que anos mais tarde se despediu numa colectividade da sede do concelho. Foi o maior desgosto que lhe podiam ter dado e lembro-me dos meus pais repararem que o homem tinha envelhecido, repentinamente, um punhado de rugas e cabelos brancos. “-Deixe lá, Senhor Joaquim.” –Confortavam-no os poucos que se mantinham chegados. “-Isto é uma cambada de ingratos que não merecem que você se preocupe por causa deles.”
Quem veio a não estar para essas palmadinhas foi um grupo de convivas de um café de bairro em que a vila se começava a expandir e onde, na ala de povoamento mais anoso, lá estava a vivenda de rés-do-chão e primeiro andar onde o poeta tinha o piano para os filhos e a janela sobre o estuário para as suas musas. Fartos do fim das diversões e das noites ideológicas que as tinham substituído, aqueles filhos de naturais e imigrantes que os engrossavam, decidiram reatar as festividades da terra que, no triénio em que aconteceram, pelos críticos foram rebaixadas à condição de festas de bairro.
Durante muitos anos, foi aquela a última manifestação da sociedade civil local, isto é, foi a última iniciativa que não contou com o suporte ou a promoção dos órgãos de poder autárquico, mas apenas com as forças e os meios que os homens bons foram capazes de reunir. Há quase uma década que aquela tradição tinha sido interrompida e quando a estreia findou, os simples foram unânimes em reconhecer que tinha sido um êxito. E também aqui pela vez derradeira, nas bocas do mundo correu o nome do senhor Madeira como a alma e a chave daquele sucesso.
Portel, 20 de Maio de 1998
2 comentários:
Recordas-te do Aqueduto?
Pois bem. Ensaiámos, durante anos, no escritório do senhor Madeira (como tu não te cansaste de repetir), apesar das ameaças e das viaturas suspeitas que, em dia de ensaio, ficavam a vigiar as entradas e saídas dos perigosos conspiradores que se atreviam a cantar dizendo coisas importantes para as pessoas!
Só a lembrança desta atitude mostra o carácter da pessoa que serviu de tema a "Intimidades"...
...que eu assino por baixo.
Abraço,
António
Vi o “Aqueduto” nesse outro centro subversivo que foi a “Academia”, onde se juntavam muitos outros perigosos conspiradores, para usar as tuas palavras que, na verdade, mostram bem a mesquinhez a que chegou um regime que tanto contribui para capar mentalmente os portugueses.
Quanto ao Senhor Madeira, de boa memória, apenas quis aqui deixar na sua pessoa uma homenagem aos populares que, por uma simples questão de bom senso e sem terem qualquer posição ideológica ou política, muito remaram contra a maré dominante desse mund(inh)o fechado que via na ignorância dos simples a melhor maneira de os manter agrilhoados perante um status quo de injustiça.
Era o Malraux que defendia que o escritor deveria viver para escrever e escrever apenas aquilo que vivesse. É uma questão de opinião que merece respeito, é certo, mas não mais que isso. Para meu gosto, importa que a literatura invente ou reinvente mundos, nos quais sejamos capazes de encontrar algo que nos permita reflectir sobre a Humanidade, pois é uma das formas que temos à disposição para produzir conhecimento sobre aquela.
Apesar disso, concordo com Mestre Llosa quando ele transporta cenas e personalidades do mundo real para esse(s) mundo(s) que faz(em) a literatura, tal como sucedeu, por exemplo, com a tia Júlia dele. Segui assim o precedente e neste romance foram vários os rostos e as vidas que fiz subir da realidade à ficção e o Senhor Joaquim Afonso Madeira foi um deles. Pode a vida de uma pessoa ser entendida fora das suas contingências? Pois bem, foram homens como ele que a estas acrescentaram a vontade e o engenho que levaram a cultura àqueles que, de outra maneira comeriam apenas dos três éfes que o salazarismo lhes queria impor à mesa. Pelo que se percebe, Sebastião Sorumenho até nasceu num meio familiar culto, mas não teria o meio envolvente qualquer relevância para o homem que se fez e o escritor que veio a ser? O Senhor Madeira , simboliza a vontade de rasgar as trevas que sempre assistiu aos seres humanos, mesmo àqueles que nasceram na base da pirâmide e por isso ele aqui estar, tal como o conhecemos.
Aquele abraço, companheiro
Luís
Enviar um comentário