NÃO SEI SE OUTRO DIA VIRÁ
Ao som de
Madredeus
Enquanto me desfaço no teu rosto, atraído pelo teu sorriso, há nos meus tímpanos uma voz que me alonga o braço até à superfície de planetas distantes, de onde retiro e atiro o pó que ao entrar na atmosfera terrestre se transmuta em fogo-de-artifício que ao meu olhar deixa em estátua. Corre um regato dos teus dedos, um regato que me lava os momentos de vitória da morte e corro sobre os seus arrojos e salpicos feitos de esmeraldas e pétalas de margaridas, ouvindo um canto que me distende e faz planar ao ritmo de um dedilhado repetitivo de guitarra e uma voz segredando-me as fórmulas mágicas que elevam o meu corpo à condição de gás das nebulosas.
Não sei se amanhã vou estar aqui admirado deste luar que trazes nos olhos, eu rasgo a minha carne e os meus músculos com a revolta de saber que amanhã não estarei aqui, inebriado de ti, fulminado pela paz e o encanto de me sussurrar pelos teus cabelos, como um viandante cansado que sobre uma pedra descansa o queixo na palma da mão e se deixa escoar, com a mesma paciência das galáxias, liberto, completamente liberto no cativeiro dos teus gestos. Mas sei que mesmo da essência da luz, por ti esperarei até ao dia do juízo final e será de mão dada contigo que me apresentarei para pedir perdão por todos os meus pecados. E também sei que entre o ontem e o amanhã está tu, para todo o sempre estarás tu, dando-me os impulsos necessários para as minhas muitas e muitas cambalhotas entre as estrelas.
Por favor, mira para o alto que eu estou lá com a presença que a velocidade da desintegração me consente, no ar pelo efeito da aragem com que as asas dos anjos teus amigos me levam a voar pelo céu da alegria em te encontrar, eu desfeito no teu rosto, colado ao íman que é o sorriso da tua contemplação.
Olha, aceita esta mão cheia de borboletas que tenho para ti, que guardei uma vida inteira numa caixinha sagrada que abri só para ti e agora, exactamente neste instante, rogo a Deus para que seja digno de ofertar, nu de humildade e cheio de vontade de te acariciar a expressão de um afago de algodão. É claro que tenho consciência da ventura que é pingar-me em teu redor, assim como compreendo a bem aventurança que é permanecer na tua órbita e nem posso dizer que o merecesse, apesar de saber que nada mais sou que um mortal, afinal um simples mortal que, cheio de lágrimas, aceita a bênção que é viver sobre a frescura do teu deambular.
Eu tenho tão pouco para te dar, mas fui a Marte buscar uma pedra que não existe nesta superfície e prometo que de hoje em diante viverei com a preocupação de não aleijar quem quer que seja, Prometo que vou ali fazer o regaço da nossa solidão grávida de delícias e desse modo incapaz de molestar um simples zumbido, para o que me basta o calor que emana do interior com que me atiras, feito pássaro, pelo horizonte.
E esta voz feiticeira a elevar-me até à metamorfose num pólen luminoso que mansamente chove no teu tacto. Esta voz feiticeira cantando-me árias de onirismo e eu, enfeitiçado, levado por essa melodia até à margem do teu coração.
Amanhã, quando eu já não estiver aqui, saberás, só tu saberás que te estarei contemplando e acenando a partir de uma estrelinha inatingível e podes estar certa que esperarei por ti, com a mesma paciência das galáxias, até ao segundo anterior do último dia do juízo.
Alhos Vedros, 21 de Maio de 1998
FIM
CORRIGENDA:
A data do quadro "VOCAÇÕES" está indevidamente registada; trata-se de 23 de Fevereiro de 1998 e não de 2011 como, por lapso, se indicou.
4 comentários:
O livro "O principezinho" começa com um desenho que o autor mostra às pessoas crescidas, perguntando se tinham medo dele. A resposta que ouvia era: Porque havia um chapéu de meter medo?
Ora, o desenho não representava nenhum chapéu, mas sim uma jibóia a digerir um elefante. Então, ele desenhou a jibóia transparente para as pessoas grandes compreenderem. Essas pessoas grandes aconselharam-no também a pôr de lado os desenhos das jibóias transparentes e opacas e a estudar outras coisas. Ele acha que assim, aos seis anos, se perdeu um grande artista...
Sebastião Sorumenho, com as suas "intimidades", mostrou que se ganhou um escritor, mas a partir deste que se perdeu um poeta...
Tens toda a razão António é de um Poema e de um Poeta que se trata. É também literatura e pintura (dessa transparente), da melhor. Romântica. Parabéns. Não há como a luz das estrelas para iluminar o imenso palco da vida, universo fora, e que manda um abraço.
Tó,
Why you say that?
Aquele abraço, companheiro
Luís
Luís,
Digamos apenas que este era o final que se impunha, só isso. Esteticamente, achei por bem acabar este filme do tempo ao jeito de uma balada; era a música que lhe faltava.
Aquele abraço, companheiro
Luís
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