POR
Abdul Cadre
Há quem entenda os caminhos
da auto-realização como formas expeditas da conquista da felicidade. É um
entendimento possível, desde que se tenha na devida conta que a felicidade não
é um patamar a que se chega e pronto, sentamo-nos a descansar numa cadeira de
baloiço, imaginando a vitória da permanência, mas permanente é apenas o desejo
de ser feliz, não a felicidade. Aliás, de felicidade o que podemos falar é de
instantes, coisa que de imediato se sabe quando um sapato desajustado nos rói o
calcanhar. Todavia, há gente descalça que se sente feliz. Dizia Séneca que «um
homem pode governar o mundo inteiro e continuar infeliz, se não sentir que é
supremamente feliz. Alcançável e permanente poderá ser a serenidade e esta sim
é um dos desideratos dos que fazem a via da auto-realização, que exige do
buscador o uso inteligente da vontade e a educação ponderada (e não reprimida)
da emoção.
No que concerne à emoção,
cuidado com as fantasias new age e de marketing que pretendem impor um conceito
um tanto abstruso de inteligência emocional, quando é evidente que as emoções
não são nem inteligentes nem estúpidas. Pascal conhecia muito bem a profunda
separação entre inteligência e emoção, duas forças (entre outras) formadoras do
sentimento e alertava para o facto de os dois principais sustentáculos da
verdade – razão e sentimentos – se enganarem mutuamente.
Tenhamos bem presente a
etimologia da palavra emoção, que significa fora de si. Ora, quem está fora de
si, dificilmente entende o que quer que seja, quando um dos significados de
inteligência é precisamente entendimento. Antigamente, quando se estudava
metafísica, dizia-se que as potências da alma eram o entendimento, a memória e
a vontade.
Dizem os psicólogos – por
brincadeira, cremos nós – que a inteligência é aquilo que os testes de QI
medem, tal como o tempo é aquilo que os relógios e os calendários dizem.
Nos meios espiritualistas, é
mais comum falar-se de crescimento do que de auto-realização, eventualmente por
receio de se confundir a descoberta e a realização do verdadeiro eu com o
sucesso social, sendo que, todavia, este não seja por si só um impedimento
daquele. O certo, porém, é que falar de crescimento serve apenas como metáfora,
vale pela analogia com as etapas da adaptação mental ao desenvolvimento
fisiológico, não sendo abusivo, nesta conformidade, falar-se de infantilidade e
maturidade espiritual. Trata-se de uma simplificação, evidentemente, que não
legitima descuidar-se esta grande diferença: o crescimento físico dá-se quer a
gente queira quer não; espiritualmente, só se nasce e só se cresce pelo uso
inteligente da vontade, ou, como diria Natália Correia: «a gente só nasce
quando somos nós que temos as dores».
Eis a razão pela qual este
crescer – que é inseparável da vontade – merece bem o nome de
auto-realização.
Mas bastará a vontade?
Parece-nos bem que não, pois
há factores externos e internos susceptíveis de prejudicar a vontade e
corromper as condições da auto-realização, como são as crenças, os hábitos
arreigados, os preconceitos, as ideias assimiladas inconscientemente, isto é, a
inércia e a rendição por comodismo aos modelos imperantes.
Ora, a auto-realização exige
que se questione tudo, que se questionem permanentemente as ideias feitas, os
hábitos adquiridos, os comportamentos esperados, porque não o fazer impede
sabermos quem verdadeiramente somos, impede-nos de chegar à plenitude de seres
concretos e únicos; não nos podemos limitar a ser viventes clonados, produtos
de modelos, de conveniências, de ideias que nos inculcaram e que, por falta de
discernimento, não percebemos que não são nossas, andam apenas por aí. São
coisas externas que nos adormecem, impedem o nosso crescimento, não nos deixam
respirar. Esperar que o exterior nos estenda uma passadeira para caminharmos
seguros para o cerne de nós mesmos, mais do que uma ilusão, é uma estultícia.
Quem espera receber do exterior comodamente e sem esforço aquilo que julga
precisar e parece fazer-lhe jeito, viverá no medo permanente de que o exterior
lhe tire a qualquer momento quanto lhe tenha proporcionado.
O que nos vem de fora é do
domínio do efémero, enquanto a auto-realização – que é o transcender desse
domínio – pertence ao permanente, que se alimenta do desejo de eternidade.
Em termos espirituais (que
não mundanos), auto-realizarmo-nos é assumir – por vontade própria, por um
exercício de vontade – a opção de caminhar (ou de não caminhar); não é adoptar
modelos, porque os modelos vêm do exterior e a auto-realização só é possível
com o que vem de dentro. É por isso que se trata de auto-realização e não de
alo-realização; não é coisa que alguém possa fazer por nós. Quem se mova por
hábitos, por rotinas, por modelos, por comportamentos extrictamente reactivos
não pode ser, não pode chegar a ser quem verdadeiramente é: realiza apenas o
que o exterior lhe impõe e reage tal como se espera que reaja e, desta forma,
nem ele nem os outros saberão quem ele é, mas apenas como é. E não adianta
arranjar hábitos novos por imitação daquilo que está em moda, nem adoptar
ideias do arsenal volúvel do politicamente correcto, só porque os mais as usam,
só porque os mais as aplaudem. Sendo postiços, nada disso é seu, são modelos
velhos e gastos, coisas exteriores que, em certas condições, podem até ser
cómodas e parecer úteis, mas aquilo que é útil – não há como fugir –
utiliza-nos e o que é cómodo adormece-nos.
Livremo-nos de preconceitos e
tenhamos a mente aberta, mas como dizem os ingleses, não tão aberta que os
miolos nos caiam no chão, porque o que vale mesmo é procurarmos a nossa
autenticidade, pormo-nos disponíveis para a descoberta da nossa plenitude. A
todo o momento há que estar atento, há que ter consciência plena do que
acontece à nossa volta e da nossa consequente resposta, observando tudo isso
como se estivéssemos aos ombros do nosso próprio eu, com a objectividade de um
cientista no seu laboratório.
Sem louvores nem condenações.
Simplesmente observando muito atentamente. Só desta forma saberemos o que é
interior e o que o não é. Só uma apropriada distância proporciona apreciar a
harmonia de uma pintura.
As nossas crenças mais
arreigadas não são verdadeiramente as nossas crenças, elas já existiam antes de
nascermos para a presente vida, provêm da nossa circunstância e são modelos a
que se torna cómodo aderir. Os modelos são gaiolas cujas grades são os dogmas
que nos aprisionam, não nos deixando ser quem somos. Romper com os modelos,
romper com os dogmas é uma condição imprescindível para se caminhar no sentido
da auto-realização. Inclusive, em relação a esta, impõe-se romper com os
modelos que propalam o caminho fácil e pronto do vem por aqui. Todo o caminho
se faz caminhando, na dependência da inteligência dos pés, de ouvidos atentos
ao que nos vem de dentro, não ao que nos vem de fora. Ulisses tapou os ouvidos
com cera, para não ouvir as sereias. Não é avisado, por mais que o pareça,
seguir as marcas deixadas por caminhantes que ninguém sabe porque caminhavam
nem para onde caminhavam.
Seguir uma religião ou uma
ideologia – não nos iludamos – é seguir um modelo, o que leva, invariavelmente,
a que se engane aquilo que está dentro com uma miragem salvífica vinda de fora,
mas que todavia julgamos nossa, interior. Os grandes místicos do passado
sofreram na carne a incompreensão dos seus, daqueles que professavam a “mesma”
crença; a perseguição, invariavelmente cruel e feroz, dos vigilantes dos
modelos impostos. Por não corresponderem ao modelo, muitos foram condenados
como heréticos.
É preciso que aprendamos por
nós mesmos o valor da aprendizagem e tenhamos a noção de que a vida é a grande
mestra e que a escola que ela nos proporciona é toda a nossa circunstância,
onde naturalmente se inscreve a crença que nos inculcaram, a nossa ideologia, e
também a reacção esperada aos estímulos. Saibamos do quanto tudo isso se
harmoniza (ou não) com o que nos vem de dentro, cuidando de não nos iludirmos.
Observemos cuidadosamente sem teorizar, sem juízos morais, até porque os juízos
morais estão necessariamente aferidos pelos hábitos e pelos modelos. Se a nossa
circunstância tem abundância de limões, façamos limonadas.
Todo o cuidado é pouco para
evitar que os modelos exteriores se instalem, seja por insuficiência na
atenção, seja porque caímos no erro de substituir uma ilusão por outra. Ao
identificarmo-nos com um dado modelo, podemos desculpar-nos com o exercício do
livre-arbítrio, mas na verdade é invariavelmente o seu encurtamento; é
coartarmos a nossa liberdade de nos perguntarmos quem verdadeiramente somos,
porque por aí apenas podemos aquilatar do quanto nos adaptámos em prejuízo do
nosso crescimento.
O que se impõe é observar
para descobrir e compreender, o que dispensa qualquer filtro do bem ou do mal,
de nos pensarmos bons ou nos pensarmos ruins. O bom observador não faz
pré-juízos, não se auto-limita pelo preconceito de assim não encontra, nem em
si nem nos outros, defeitos, vícios, coisas ruins; encontra características. As
suas, de que não goste, não as reprima, transmute-as pelo cultivo dos seus
opostos; nos outros, se idênticas encontra, saiba que não são deles, mas suas,
neles reflectidas. Não é segredo para ninguém que todos somos espelhos uns dos
outros. Não nos envenenemos catando defeitos. No fundo, sabemos bem que aquilo
que o vulgo chama defeito é apenas um défice, uma deficiência de qualidade.
Falarmos de auto-realização,
implica trazermos à colação aquilo que se designa em Psicologia como o sentido
do eu. Todavia, o sentido do eu não é o eu, mas sim o seu reflexo e, neste
entendimento, a auto-realização consistirá em ultrapassar o simples reflexo,
isto é, a “normalidade” e atingir a “anormalidade” que é fazermos coincidir o reflectido
com o reflector, que o mesmo é dizer coincidirmos com as características mais
íntimas e profundas da própria alma.
Quando falamos de
observar para descobrir, que não se entenda este apelo como a valorização
da objectividade em absoluto. Esta é sem dúvida um requisito inilidível de que
observa, mas exige a consciência de que por mais objectivos que nos pareçam os
sinais do mundo, só subjectivamente os entendemos e a maioria nem sequer
entenderemos, por nos falhar a atenção e o discernimento. Realce-se que o que é
preciso é não nos submetermos aos hábitos e às crenças, que é sobre eles que se
constroem os modelos de aconchego e as rotinas.
O eu que não ultrapassou a
condição de ser apenas reflexo de um reflexo faz parte do espectáculo do mundo
e não pode ir além de medir os factos e as circunstâncias pelos critérios do
agrado e do desagrado, tudo lhe sendo pontual e limitado. Na sua pequena visão
dual, a principal característica é a discriminação e enaltece no seu agir o
princípio do prazer, que invariavelmente será frustrado pelas contingências
sociais, que o obrigarão a submeter-se ao princípio da realidade.
O eu reflectido está no mundo e é do mundo; o eu
reflector, estando igualmente no mundo, não lhe pertence nem lhe é submissível,
espera sim que o seu reflexo cresça no sentido do aperfeiçoamento do mundo, o
que implica cultivar o Bem, o Belo e o Justo, única forma de actualizarmos as
nossas potencialidades e gerirmos qualquer défice nas nossas características.
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