quinta-feira, 4 de junho de 2015

OS CAMINHOS DA AUTO-REALIZAÇÃO


POR
Abdul Cadre

Há quem entenda os caminhos da auto-realização como formas expeditas da conquista da felicidade. É um entendimento possível, desde que se tenha na devida conta que a felicidade não é um patamar a que se chega e pronto, sentamo-nos a descansar numa cadeira de baloiço, imaginando a vitória da permanência, mas permanente é apenas o desejo de ser feliz, não a felicidade. Aliás, de felicidade o que podemos falar é de instantes, coisa que de imediato se sabe quando um sapato desajustado nos rói o calcanhar. Todavia, há gente descalça que se sente feliz. Dizia Séneca que «um homem pode governar o mundo inteiro e continuar infeliz, se não sentir que é supremamente feliz. Alcançável e permanente poderá ser a serenidade e esta sim é um dos desideratos dos que fazem a via da auto-realização, que exige do buscador o uso inteligente da vontade e a educação ponderada (e não reprimida) da emoção.

No que concerne à emoção, cuidado com as fantasias new age e de marketing que pretendem impor um conceito um tanto abstruso de inteligência emocional, quando é evidente que as emoções não são nem inteligentes nem estúpidas. Pascal conhecia muito bem a profunda separação entre inteligência e emoção, duas forças (entre outras) formadoras do sentimento e alertava para o facto de os dois principais sustentáculos da verdade – razão e sentimentos – se enganarem mutuamente.

Tenhamos bem presente a etimologia da palavra emoção, que significa fora de si. Ora, quem está fora de si, dificilmente entende o que quer que seja, quando um dos significados de inteligência é precisamente entendimento.  Antigamente, quando se estudava metafísica, dizia-se que as potências da alma eram o entendimento, a memória e a vontade.

Dizem os psicólogos – por brincadeira, cremos nós – que a inteligência é aquilo que os testes de QI medem, tal como o tempo é aquilo que os relógios e os calendários dizem.

Nos meios espiritualistas, é mais comum falar-se de crescimento do que de auto-realização, eventualmente por receio de se confundir a descoberta e a realização do verdadeiro eu com o sucesso social, sendo que, todavia, este não seja por si só um impedimento daquele. O certo, porém, é que falar de crescimento serve apenas como metáfora, vale pela analogia com as etapas da adaptação mental ao desenvolvimento fisiológico, não sendo abusivo, nesta conformidade, falar-se de infantilidade e maturidade espiritual. Trata-se de uma simplificação, evidentemente, que não legitima descuidar-se esta grande diferença: o crescimento físico dá-se quer a gente queira quer não; espiritualmente, só se nasce e só se cresce pelo uso inteligente da vontade, ou, como diria Natália Correia: «a gente só nasce quando somos nós que temos as dores».
Eis a razão pela qual este crescer – que é inseparável da vontade –  merece bem o nome de auto-realização.

Mas bastará a vontade?
Parece-nos bem que não, pois há factores externos e internos susceptíveis de prejudicar a vontade e corromper as condições da auto-realização, como são as crenças, os hábitos arreigados, os preconceitos, as ideias assimiladas inconscientemente, isto é, a inércia e a rendição por comodismo aos modelos imperantes.

Ora, a auto-realização exige que se questione tudo, que se questionem permanentemente as ideias feitas, os hábitos adquiridos, os comportamentos esperados, porque não o fazer impede sabermos quem verdadeiramente somos, impede-nos de chegar à plenitude de seres concretos e únicos; não nos podemos limitar a ser viventes clonados, produtos de modelos, de conveniências, de ideias que nos inculcaram e que, por falta de discernimento, não percebemos que não são nossas, andam apenas por aí. São coisas externas que nos adormecem, impedem o nosso crescimento, não nos deixam respirar. Esperar que o exterior nos estenda uma passadeira para caminharmos seguros para o cerne de nós mesmos, mais do que uma ilusão, é uma estultícia. Quem espera receber do exterior comodamente e sem esforço aquilo que julga precisar e parece fazer-lhe jeito, viverá no medo permanente de que o exterior lhe tire a qualquer momento quanto lhe tenha proporcionado.

O que nos vem de fora é do domínio do efémero, enquanto a auto-realização – que é o transcender desse domínio – pertence ao permanente, que se alimenta do desejo de eternidade.
Em termos espirituais (que não mundanos), auto-realizarmo-nos é assumir – por vontade própria, por um exercício de vontade – a opção de caminhar (ou de não caminhar); não é adoptar modelos, porque os modelos vêm do exterior e a auto-realização só é possível com o que vem de dentro. É por isso que se trata de auto-realização e não de alo-realização; não é coisa que alguém possa fazer por nós. Quem se mova por hábitos, por rotinas, por modelos, por comportamentos extrictamente reactivos não pode ser, não pode chegar a ser quem verdadeiramente é: realiza apenas o que o exterior lhe impõe e reage tal como se espera que reaja e, desta forma, nem ele nem os outros saberão quem ele é, mas apenas como é. E não adianta arranjar hábitos novos por imitação daquilo que está em moda, nem adoptar ideias do arsenal volúvel do politicamente correcto, só porque os mais as usam, só porque os mais as aplaudem. Sendo postiços, nada disso é seu, são modelos velhos e gastos, coisas exteriores que, em certas condições, podem até ser cómodas e parecer úteis, mas aquilo que é útil – não há como fugir – utiliza-nos e o que é cómodo adormece-nos.

Livremo-nos de preconceitos e tenhamos a mente aberta, mas como dizem os ingleses, não tão aberta que os miolos nos caiam no chão, porque o que vale mesmo é procurarmos a nossa autenticidade, pormo-nos disponíveis para a descoberta da nossa plenitude. A todo o momento há que estar atento, há que ter consciência plena do que acontece à nossa volta e da nossa consequente resposta, observando tudo isso como se estivéssemos aos ombros do nosso próprio eu, com a objectividade de um cientista no seu laboratório.

Sem louvores nem condenações. Simplesmente observando muito atentamente. Só desta forma saberemos o que é interior e o que o não é. Só uma apropriada distância proporciona apreciar a harmonia de uma pintura.
As nossas crenças mais arreigadas não são verdadeiramente as nossas crenças, elas já existiam antes de nascermos para a presente vida, provêm da nossa circunstância e são modelos a que se torna cómodo aderir. Os modelos são gaiolas cujas grades são os dogmas que nos aprisionam, não nos deixando ser quem somos. Romper com os modelos, romper com os dogmas é uma condição imprescindível para se caminhar no sentido da auto-realização. Inclusive, em relação a esta, impõe-se romper com os modelos que propalam o caminho fácil e pronto do vem por aqui. Todo o caminho se faz caminhando, na dependência da inteligência dos pés, de ouvidos atentos ao que nos vem de dentro, não ao que nos vem de fora. Ulisses tapou os ouvidos com cera, para não ouvir as sereias. Não é avisado, por mais que o pareça, seguir as marcas deixadas por caminhantes que ninguém sabe porque caminhavam nem para onde caminhavam.

Seguir uma religião ou uma ideologia – não nos iludamos – é seguir um modelo, o que leva, invariavelmente, a que se engane aquilo que está dentro com uma miragem salvífica vinda de fora, mas que todavia julgamos nossa, interior. Os grandes místicos do passado sofreram na carne a incompreensão dos seus, daqueles que professavam a “mesma” crença; a perseguição, invariavelmente cruel e feroz, dos vigilantes dos modelos impostos. Por não corresponderem ao modelo, muitos foram condenados como heréticos.

É preciso que aprendamos por nós mesmos o valor da aprendizagem e tenhamos a noção de que a vida é a grande mestra e que a escola que ela nos proporciona é toda a nossa circunstância, onde naturalmente se inscreve a crença que nos inculcaram, a nossa ideologia, e também a reacção esperada aos estímulos. Saibamos do quanto tudo isso se harmoniza (ou não) com o que nos vem de dentro, cuidando de não nos iludirmos. Observemos cuidadosamente sem teorizar, sem juízos morais, até porque os juízos morais estão necessariamente aferidos pelos hábitos e pelos modelos. Se a nossa circunstância tem abundância de limões, façamos limonadas.

Todo o cuidado é pouco para evitar que os modelos exteriores se instalem, seja por insuficiência na atenção, seja porque caímos no erro de substituir uma ilusão por outra. Ao identificarmo-nos com um dado modelo, podemos desculpar-nos com o exercício do livre-arbítrio, mas na verdade é invariavelmente o seu encurtamento; é coartarmos a nossa liberdade de nos perguntarmos quem verdadeiramente somos, porque por aí apenas podemos aquilatar do quanto nos adaptámos em prejuízo do nosso crescimento.

O que se impõe é observar para descobrir e compreender, o que dispensa qualquer filtro do bem ou do mal, de nos pensarmos bons ou nos pensarmos ruins. O bom observador não faz pré-juízos, não se auto-limita pelo preconceito de assim não encontra, nem em si nem nos outros, defeitos, vícios, coisas ruins; encontra características. As suas, de que não goste, não as reprima, transmute-as pelo cultivo dos seus opostos; nos outros, se idênticas encontra, saiba que não são deles, mas suas, neles reflectidas. Não é segredo para ninguém que todos somos espelhos uns dos outros. Não nos envenenemos catando defeitos. No fundo, sabemos bem que aquilo que o vulgo chama defeito é apenas um défice, uma deficiência de qualidade.    
Falarmos de auto-realização, implica trazermos à colação aquilo que se designa em Psicologia como o sentido do eu. Todavia, o sentido do eu não é o eu, mas sim o seu reflexo e, neste entendimento, a auto-realização consistirá em ultrapassar o simples reflexo, isto é, a “normalidade” e atingir a “anormalidade” que é fazermos coincidir o reflectido com o reflector, que o mesmo é dizer coincidirmos com as características mais íntimas e profundas da própria alma.

Quando falamos de observar  para descobrir, que não se entenda este apelo como a valorização da objectividade em absoluto. Esta é sem dúvida um requisito inilidível de que observa, mas exige a consciência de que por mais objectivos que nos pareçam os sinais do mundo, só subjectivamente os entendemos e a maioria nem sequer entenderemos, por nos falhar a atenção e o discernimento. Realce-se que o que é preciso é não nos submetermos aos hábitos e às crenças, que é sobre eles que se constroem os modelos de aconchego e as rotinas.

O eu que não ultrapassou a condição de ser apenas reflexo de um reflexo faz parte do espectáculo do mundo e não pode ir além de medir os factos e as circunstâncias pelos critérios do agrado e do desagrado, tudo lhe sendo pontual e limitado. Na sua pequena visão dual, a principal característica é a discriminação e enaltece no seu agir o princípio do prazer, que invariavelmente será frustrado pelas contingências sociais, que o obrigarão a submeter-se ao princípio da realidade.

O eu reflectido está no mundo e é do mundo; o eu reflector, estando igualmente no mundo, não lhe pertence nem lhe é submissível, espera sim que o seu reflexo cresça no sentido do aperfeiçoamento do mundo, o que implica cultivar o Bem, o Belo e o Justo, única forma de actualizarmos as nossas potencialidades e gerirmos qualquer défice nas nossas características.


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