sexta-feira, 17 de julho de 2015

Etnografar a Arte de Rua (XI) Graffitar a Literatura





















Graffitis fotografados por Luís Souta, 2015.
Rua das Rosas, Bairro das Portelas, Cascais.


Este é um dos cinco novos mural paintings que a vila de Cascais “adquiriu” no âmbito da 2ª edição do “Muraliza - Festival de Arte Mural”, que aí decorreu entre 29 de Junho e 6 de Julho do presente ano. Uma interessante iniciativa que procura «reforçar o estatuto de Cascais como berço de todas as expressões artísticas de rua em Portugal».

O autor deste graffiti urbano é o italiano Millo. Pintou a fachada lateral de um conjunto de quatro lotes – casas sociais, da tipologia espoliadora de varandas. Essa linha de prédios, de três andares, fica situado muito perto do bairro onde resido. Por isso, tive a sorte de o ver, durante uns dias, concentrado no seu labor artístico: de trincha na mão, em cima de uma grua, dando corpo a esta ‘criança’ montada no seu cavalinho de madeira azul e vermelho, em primeiro plano, e, em fundo, uma moderna cidade, clonada de edifícios-caixotes, a preto e branco.

Ali passei várias vezes para o fotografar. A arte de rua tem esta peculiaridade: permite, a qualquer um, assistir, in loco, ao decorrer do processo criativo. Tal não é possível quando o pintor trabalha no seu ateliê, resguardado dos olhares do público que só conhecerá o produto, depois de acabado, quando exposto. Eduarda Dionísio no seu romance As histórias não têm fim (Cotovia, 1997, pp. 194 e 195) mostra-nos como esse privilégio fica reservado àqueles com quem o artista partilha a intimidade:

«Quando Helena chega a casa, o pintor está precisamente a assinar o último quadro, uma tela enorme, a que falta para encher a parede do fundo da exposição que se inaugura dali a dois dias e que está quase montada, um quadro que portanto não figurará no catálogo. (…)

Depois de assinar o quadro, ele retoca ainda um canto, passa laca de garança por cima dum vermelhão, em transparência. Já podem vir buscar o quadro quando quiserem. É só ela telefonar. (…)

Acabei o quadro, diz. Podes telefonar para a galeria quando quiseres.

Abraçam-se e beijam-se como há muito tempo não faziam. Riem os dois pouco mais ou menos como antigamente.

Ele diz
posso fazer-te o retrato?

E naquela mesma tarde pôs outra tela no cavalete, nem grande nem pequena.»

Eduarda Dionísio deve ter tido essa dádiva de seu pai, o pintor (e também escritor e professor) Mário Dionísio (1916-1993), um dos principais teorizadores do neo-realismo nas artes plásticas, que pel’ A Paleta e o Mundo viria a receber, em 1964, o Grande Prémio de Ensaio da Sociedade Portuguesa de Escritores. Esta obra tem sido dissecada em múltiplas sessões de “leitura comentada” que se vêm realizando na “Casa da Achada - Centro Mário Dionísio”, em Lisboa (Mouraria) http://www.centromariodionisio.org/ Este dinâmico Centro, de cultura e animação, é fruto do amor, gratidão e enorme admiração da filha pelo seu pai. Filha que herdou o património artístico e cívico de uma figura ímpar do século XX português, e ao dar-lhe continuidade, ampliou-o.

Luís Souta


1 comentário:

luis santos disse...


Muito bom.

Magnífica ideia este "Muraliza - Festival de Arte Mural" de Cascais. Uma forma de tornar os nossos lugares muito mais agradáveis, mais bonitos de se ver e de viver. Uma boa forma de renovar os degradados centros urbanos das nossas cidades que, regra geral, tanto necessitam de reabilitação.

Eis, por isso, uma boa fonte de inspiração para a nossa administração local, pois que tão precisados estamos de dar beleza ao nosso, tão cheio de história, mas envelhecido burgo.

Aquele Abraço.