quinta-feira, 9 de julho de 2015


Palestra efectuada na Sociedade de Geografia de Lisboa, em 29 de Junho de 2015,
no âmbito das Comemorações do 6.º Centenário da estadia
d’el-Rei Dom João I em Alhos Vedros.

COMUNICAÇÃO

Esta comunicação é uma síntese do power-point que acabámos de analisar. Aquando da preparação de ambos, dei preponderância ao texto do cronista. Estruturei a comunicação em 7 pontos, que enunciarei ao longo da leitura. Como já sabeis, o tema que me foi proposto é

Ceuta, 1415 – o Conselho Régio de Alhos Vedros,
o último antes da partida de Lisboa.”

1. De acordo com José Adriano de Freitas Carvalho, no seu escritoOs Fundamentos Poéticos do Documento. A Propósito de uma Página Exemplar do Leal Conselheiro”, incluído em “Estudos em Homenagem a Luís António de Oliveira Ramos”, publicado em 2004 pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, p. 385, no respeitante ao Conselho Régio efectuado naquele povoado ribeirinho é dito que consistiu em «uma reunião breve, e com reduzido número de conselheiros (…), sob um alpendre, para dar conta a D. João I do resultado da anterior, em que o rei (…) discorre sobre os empachos levantados
Contudo, tal Conselho Régio veio a revelar-se decisivo, no tocante à partida da frota para a conquista de Ceuta.

2. Quanto à relevância do Conselho Régio de Alhos Vedros, comparativamente aos Conselhos anteriormente levados a cabo, é minha intenção deixar bem clarificadas duas considerações: primeira, ausência de chauvinismo da minha parte, que seria desprovido de total razão de ser na sociedade actual, que se pretende cada vez mais evoluída, corporizada numa realidade multi e pluricultural; segunda, a minha convicção de que o sucesso ou o insucesso na implementação de um projecto, seja ele de que natureza for, advém, indiscutivelmente, da capacidade de liderança (ou ausência dela), mas igualmente do trabalho em equipa, numa imprescindível comunhão de vontades (ou não) que, ao longo do tempo, determinará os consequentes resultados (êxitos ou fracassos). Lendo o relato do cronista, no respeitante ao planeamento da empresa bélica que visava Ceuta, constatamos que, da parte de Dom João I, houve ajuizada liderança, alongada maturação, trabalho estruturado «ca mais de três anos havia, que ele tinha este feito começado».
Nesta comunicação, incorreria numa gravíssima omissão, se não referisse que o Conselho Régio de Alhos Vedros adveio da conjugação de dois factores: um, acidental, isto é, a urgência de garantir a segurança do Rei num local preservado da peste; o outro, a necessidade de ser definido o rumo a dar à empresa norteafricana, que o inesperado falecimento da Rainha embargara. Tratou-se, pois, de mais um Conselho, na continuidade dos anteriores.

3. Previamente informado da irresolução ocorrida no Conselho Régio da véspera, que tivera lugar no Restelo, o Monarca ouviu apoiantes e oponentes da realização da empresa que há anos trazia o reino em frenesim. 
Analisando a Crónica da Tomada de Ceuta, de Gomes Eanes de Zurara, os argumentos a favor eram «que todavia el-rei devia partir, como primeiramente tinha ordenado, porque deziam que tamanhas despesas como já eram feitas, e tais provimentos com tantos trabalhos remediados e buscados, nom deviam assim de passar em vão. Quanto mais, pois aquilo fora movido principalmente por serviço de Deus, se nom devia leixar d’acabar por nenhuma cousa, nem havia hi rezom per que se justamente leixasse de fazer, ca posto que assim a Rainha falecesse, sua morte a tal feito nom devia fazer empacho. Ca a Rainha nom era mais que uma mulher, cuja morte nom trazia outra torva pera seu propósito, somente a tristeza que eles por sua causa filhavam. (…) Quanto mais que a fama deste feito era tão devulgada per muitas partes do mundo, que todos pensavam que tamanho movimento nom podia parar sem cometimento dalgum grande feito. Pelo fim do qual estavam cada dia em esperança de ouvir certo recado. A qual cousa seria mui vergonhosa assim pera el-rei como pera todo o reino, quando soubessem que por semelhante azo o leixavam de poer em fim
Avançando na leitura da narrativa do cronista, aqueles que eram contrários à abalada da frota «acordavam que todavia el-rei por nenhum caso devia partir. Por certo, deziam eles, se vós dezeis que por isto ser serviço de Deus o devemos principalmente de seguir, bem se mostra que Lhe nom praz de semelhante movimento. Por quanto, ante os nossos olhos traz tão manifestos sinais, per que de rezom devemos creer que o nosso movimento é comtrayro de Sua vontade! Que cousa tão maravilhosa pensais, que é o dano que esta pestenemça fez e faz cada dia em tanta boa gente, como per sua causa faleceu e falece? E nom é dúvida, que depois que forem todos dentro nos navios, que se nom acenda muito mais, ca o ajuntamento a fará muito mais acender. E o remédio proveitoso pera ela seria de se espalhar agora esta gente. E é certo que nom poderia tamanho fogo estar muito que se nom apagasse. E se nós agora partíssemos, pode ser que assim como morreu a Rainha, morrerão outras pessoas tais, cujo dano trazerá muito grande perda. Devemos ainda muito recear tamanho dano, como recebemos na morte daquela senhora, porque somente as suas orações eram abastamtes pera nos livrarem de quaisquer perigos. Ca bem mostrou Nosso Senhor Deus sinais acerca da sua morte, per que muito devemos sentir a perda de seu falecimento, do qual nom há nenhum, posto que de pequena condiçom seja, que nom tenha mui grande sentido. Certamente nós lhe mostraríamos sinal de pouco amor, perdendo em tão breve tempo memória de sua morte, nom tomando sequer algum espaço per que o mundo conhecesse o sentido que tínhamos de sua morte. Mas logo assim tirados dos choros de sua sepultura fazermos partida, nom seria bem. E que ainda quiséssemos leixar estas cousas, temos outro mui grande empacho, que é muito pera considerar. E isto é que por azo da doença da Rainha se desaviaram muitas cousas, pera corregimento das quais nom há mester menos de um mês. Pois nós somos agora casi em fim de julho, e quando um mês passasse, seríamos em fim d’agosto, que é já começo do inverno, em que se nom deve começar semelhante feito. É assim que, por todas estas rezões, se deve por agora escusar a eixecuçom desta cousa 
 
4. Uma vez escutados os pareceres divergentes sustentados por cada uma das partes beligerantes, o Rei revelou ser detentor de apurada eloquência e de incontestável sagacidade diplomática, aptidões que lhe permitiram aproveitar, de forma exímia, os argumentos dos opositores, fazendo-os reverter a favor da concretização da empresa, como se pode inferir das seguintes transcrições:
«(…) el-rei ouvidas assim aquelas rezões, descobriu sua cabeça que tinha coberta com seu doo, e disse. Muito me pesa porque em tão boas pessoas é achado nenhum falecimento de fraqueza em semelhante caso. Ca certamente eu cuidara, que posto que eu, por causa de minha grande tristeza, ou por outro algum azo quisera ficar, que eles me constrangeram pera ele, conselhando-me que todavia seguisse minha viagem. Porém, considerando acerca de todollos empachos que eles puseram em minha ida, cuja força principalmente está em estes acontecimentos que se ora seguiram, contando pelo mais forte o falecimento da Rainha que Deus haja. Creendo que o aparecimento destes sinais é mui grande amoestação de nossa ficada, o que eu todo entendo pelo contrayro, porque notório é, que pera prosseguimento de tamanho feito, nom cumpre mais que irmos arrependidos e purgados de nossos pecados, emclinamdo ao Senhor Deus nossas almas, tornando-nos a Ele de todo coraçom, fazendo penitência dos erros passados que contra Ele cometemos, e demandando-Lhe mui humildosamente que nos livre de nossos inimigos, e que Lhe praza dar glória a Seu nome, exalçando a Sua santa fé, quebrantando e destruindo todollos Seus comtrayros com a Sua própria virtude. (…) Porque necessário é, que Deus use das Suas creaturas como Lhe prouver. (…) Pois que sabemos nós, se Nosso Senhor Deus per estas cousas nos quis provar? (…) Certamente eu creo que todas estas cousas que assim acomteçerom, som mais porque Deus per elas nos mostra a çertidom da vitória que o comtrayro (…) e pera nós isto firmemente creermos, ponhamos ante os nossos olhos as maravilhosas cousas que lhe acomteçerom antes de sua morte, pelas quais certamente sabemos, que a sua alma está em bem-aventurado repouso
                        
5. Mais adiante, o cronista apresenta-nos um esclarecedor arquétipo do exercício da autoridade régia. Não nos esqueçamos que, à época, meados da segunda década do séc. XV, a sociedade portuguesa se achava ainda profundamente alicerçada na matriz medieval. Daí que, na resolução de controvérsias de carácter político, a «última palavra» competia, incontestavelmente, ao Rei.
Pela pena de Zurara, sabe-se que o mesmo sucedeu no Conselho Régio de Alhos Vedros, em virtude da urgência da tomada de uma decisão relativamente a Ceuta. É, então, alicerçado em tal prerrogativa, que Dom João I declara peremptoriamente: «porém por todas estas rezões eu determino com a graça do Senhor Deus de seguir todavia minha temçom por Seu serviço. Ca doutra guisa nom me parece que faria o que devo. (…) Pois que assim é, disse el-rei, toda minha detença será daqui até quarta-feira, e depois siga-me quem puder. E vós, meus filhos, tornai-vos logo à vossa frota, e fazei dar a tudo tal aviamento, que quarta-feira, a Deus prazendo, possamos partir

6. Em face do anteriormente referido, dois detalhes dignos de realce que mencionar, os quais, na minha opinião, conferem ao Conselho Régio de Alhos Vedros um carácter sui generis, porque deliberativo: o primeiro, ter sido nesse povoado da «borda-d’água» que, finalmente, foi tomada a decisão de partir para Ceuta; o segundo, aí se ter definido uma data - 23 de Julho, antevéspera do Dia de Santiago - para abalar de Alhos Vedros e rumar ao Restelo, a fim de aprontar o que carecia ser aprestado para a partida da frota.

7. E, para concluir, tenho de confessar-vos um desejo pessoal… Oxalá eu tenha conseguido dar o meu modesto contributo, para deixar bem gravado na memória individual e na memória colectiva que, na segunda metade do mês de Julho, do ano 1415 da nossa Era, ocorreu em Alhos Vedros um facto assaz marcante para a História Local! Todavia, proclamar bem alto, que tal acontecimento, mesmo «contra possíveis ventos e marés», se encontra, incontestavelmente, arreigado na História Nacional!

                                                                     Muito obrigado!

                       Francisco José Noronha dos Santos


(Não é usada a grafia preconizada pelo actual Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa)

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