Luís Santos
UM CONSELHO RÉGIO NO
"CAIS VELHO"
D. João I, Grão-Mestre da Ordem (religiosa) de São Bento de
Avis e, por isso, também designado por Mestre de Avis, foi aclamado Rei de
Portugal nas cortes de 1385 e esteve à frente dos destinos do país até 1433.
Quatro anos depois de se tornar rei desposou Filipa de Lencastre, a mãe da
famosa Ínclita Geração.
A “Ínclita Geração”, ou “Ilustre Geração”, era constituída
por D. Duarte, futuro rei de Portugal, também escritor e poeta; D. Pedro,
infante de reconhecido esclarecimento intelectual; o infante D. Henrique, o
Navegador, figura de proa dos Descobrimentos Portugueses; D. Fernando, o
infante Santo; D. João, condestável do reino; e a infanta Isabel, Duquesa de
Borgonha.
Corria o ano de 1415 quando D. João I, em luto por sua
mulher que falecera acometida pela peste negra, e para se defender da própria
epidemia, se refugiou em Alhos Vedros, tendo ficado instalado, muito
provavelmente, no Palácio do Cais do Descarregador, ou do “Cais Velho”, em
lugar, mais ou menos coincidente, onde ainda hoje existe o Palacete dos Condes
de Sampaio.
Nas traseiras desse Palácio haveria um alpendre que protegia
daquele intenso sol do mês de julho, contíguo ao qual se estendia um belo
jardim. Em resumo, podemos imaginar D. João I com seu filho bastardo D. Afonso,
que o acompanhava, recebendo os infantes e debatendo sobre as possibilidades
de, para o bem e para o mal, se ir guerrear a Ceuta, naquele que constituiu um
dos três conselhos régios que se fizeram a este propósito (Lisboa, Torres
Vedras e Alhos Vedros). Acentue-se que a conquista de Ceuta costuma ser
referida como a primeira etapa da expansão ultramarina portuguesa, constituindo
por isso mesmo um acontecimento de extrema importância na história do país e,
logo, de maior valor para a história local.
Este foi, sem dúvida, um período áureo da história da região
que tinha, então, Alhos Vedros como sede de concelho. Entre outros atributos,
sabe-se que a dimensão do território era apreciável estendendo-se entre os
limites da Aldeia Galega (Montijo), Palmela e Coina; o número de habitantes era
muito significativo para a época, falando-se em “oitocentos e tantos
moradores”, alguns deles da alta nobreza; tinha direito de voto nos destinos do
país quando se reuniam as “Cortes”; dava-se conta de duas Igrejas, várias
ermidas e dois conventos; uma crescente atividade económica que se foi
desenvolvendo desde os inícios da nação, onde, relembre-se, pontificava uma
importante indústria naval, uma abundante produção agropecuária, muito sal,
lenha e cerâmica, num período onde a navegabilidade do estuário do Tejo e a
proximidade com Lisboa eram elementos cruciais de produção de riqueza.
E é por estas, e por outras, que a recuperação do Palacete
do Cais Velho, possível lugar de testemunho das histórias da história que por
estes sítios se viveram, seria de grande importância para a região.
DE ALHOS VEDROS ATÉ À
ÍNDIA
Valorizando a história da nossa região, D. Manuel I nasceu
em Alcochete em 1469 e foi entronizado rei de Portugal em 1495. Haveria de
seguir a política de expansão ultramarina dos seus antecessores, de tal forma
que, dois anos depois de ter subido ao trono, no dia 8 de julho de 1497, Vasco
da Gama estava de partida para a Índia, tal como, algum tempo depois, no dia 9
de Março de 1500, Pedro Álvares Cabral partia para aquela que acabou por ser a
Viagem da descoberta do caminho marítimo para o Brasil.
Sobre esse crucial acontecimento da história de Portugal, a
Viagem de Vasco da Gama à Índia, e continuando a estabelecer relações com a
história local, deixamos breve testemunho sobre Álvaro Velho, cronista e
marinheiro, o presumível autor do diário de bordo “Roteiro da Índia”, pois
assim se chama o texto que nos é valioso legado e que, em 2013, foi inscrito
pela UNESCO na lista do património Memória do Mundo.
Álvaro Velho era natural do Barreiro, na altura um lugar que
ainda se encontrava integrado em Alhos Vedros. Como sabemos, o Barreiro é um
dos “filhos” de primeira geração do Concelho de Alhos Vedros, do qual viria a autonomizar-se
em 1521, através de “Carta de Vila” atribuída pelo rei D. Manuel I. Atualmente,
além de alguma toponímia local, dá nome a uma Escola no Lavradio.
Como curiosidade, relembre-se que foi em memória deste
“Roteiro da Índia” que a bola com que se jogou o Campeonato Europeu de Futebol,
em 2004, que se realizou em Portugal, foi justamente batizada com o nome de
“roteiro”. Enfim, uma breve nota de rodapé que poderá ter aproveitamento para o
futuro museu do Palacete do Cais Velho.
Sobre Álvaro Velho, não existem muitas informações da sua
vida. Sabe-se que viveu entre os séculos XV e XVI, marinheiro, cronista, que
foi com Vasco da Gama à Índia e que na viagem de regresso, como diz Branquinho
da Fonseca em As Grandes Viagens Portuguesas, “deve ter desembarcado na Guiné,
onde terá ficado por qualquer razão imprevista. Na verdade o Roteiro termina
bruscamente no dia em que atingem os Baixos do Rio Grande, e posteriormente há
notícias dum Álvaro Velho na costa da Serra Leoa, onde parece ter estado
durante oito anos. Escreveu, além deste Roteiro, uma "Descrição da costa
ao sul do rio da Gâmbia", uma "Relação dos Reinos ao sul de
Calecut" e um "Vocabulário malaio". O Roteiro foi publicado pela
primeira vez em 1838, tendo sido seguidamente traduzido para francês, inglês e
alemão.”
A ILHA DOS AMORES:
ENTRE ALHOS VEDROS E O BARREIRO
No círculo
que o rio faz
aqui,
avista-se uma ilha
que a voz
mansa das águas
chama de
eterna maravilha,
num momento
mais insensato
chamaram-lhe
“Ilha do rato”,
mas eu nos
meus sonhos às cores
chamo-lhe de
“Ilha dos Amores”.
Podemos dizer, então, que o nosso cronista Álvaro Velho, o
tal barreirense de Alhos Vedros, à semelhança dos outros nautas que foram na
Viagem do Gama até à Índia, e seguindo o Canto IX dos Lusíadas, de Luís de
Camões (1524-1580), também terá entrado na tal “Ilha dos Amores”.
Como diz Agostinho da Silva, “Aqueles marinheiros
portugueses, aquela esquadra de Gama que volta, (…) é uma Deusa de fora, é a
força interna do mundo, é a máquina interna da História que leva a Ilha dos
Amores para diante dos navios portugueses. (…) Camões dá este conselho
pedagógico aos portugueses: «os meus amigos, se querem alcançar o Céu na Terra,
tratem do seu navio, mantendo-o em ordem, com disciplina a bordo, porque um dia
a Ilha dos Amores aparece» (…) É como se eles tivessem entrado em alguma coisa
na qual tivessem plena licença de serem homens inteiramente livres. São as
Ninfas, é a comida, é a paisagem, são os passeios, o encanto das conversas,
tudo isso há. Portanto, para Camões, um projecto de futuro inclui uma inteira
liberdade do homem e um inteiro gosto do homem pela apreciação dos fenómenos.”
E, continua Agostinho, “na Ilha dos Amores acontece uma coisa muito curiosa,
das tais Deusas, vem a possibilidade deles descobrirem o futuro. Os marinheiros
portugueses ouvem, da Deusa, aquilo que será o futuro da História de Portugal.
Ao mesmo tempo que estão presos a fenómenos libertam-se da tal cadeia do
Tempo.”