Uma Revista que se pretende livre, tendo até a liberdade de o não ser. Livre na divisa, imprevisível na senha. Este "Estudo Geral", também virado à participação local, lembra a fundação do "Estudo Geral" em Portugal, lá longe no ido século XIII, por D. Dinis, "o plantador das naus a haver", como lhe chama Fernando Pessoa em "Mensagem". Coordenação de Edição: Luís Santos.
quinta-feira, 24 de junho de 2010
A VISÃO DE SARAMAGO
Nos “Cadernos de Lanzarote”, diz Saramago:
“Em bem e em mal, tudo quanto dos editores se conte é sempre menos do que deveria ser contado.
…
Pior do que isto, é quando os editores têm opiniões, e muito pior é quando as expressam.”
Afirma que alguns editores mesmo quando aceitam o livro são “capazes de aproveitar a oportunidade para tornarem público que o autor, simplesmente, não sabe o que faz. A mim aconteceu-me esta humilhação, com Michael Naumann, que, um dia, em sua própria casa, diante de convidados, declarou alto e bom som que o Baltasar de Das Memorial, ao contrário do que eu havia escrito, não tinha morrido nas fogueiras da Inquisição e vivia feliz e contente com a sua Blimunda. Tentei explicar que seria impossível a alguém, naquelas circunstâncias, amarrado a um poste e com uma fogueira enorme aos pés, escapar com vida, mas Michael Naumann fitou-me severamente e repetiu: “Se eu digo que não morreu, é porque não morreu!”
E, logo a seguir, Saramago, interroga-se: “Desde então tenho vivido a perguntar-me se de facto não me terei enganado, se me terei esquecido de escrever as linhas que faltavam, aquelas que descreveriam a libertação de Baltazar, a fuga, a felicidade com Blimunda.”
Se tudo o que se diz de um editor, nunca chegará ao que deveria ser contado, em bem e em mal, não haverá ninguém que ouse criticar, a pessoa que, numa recensão crítica, se atreva a aventar um pensamento, um molho de pensamentos, numa conversa, que como as cerejas, vêm umas a seguir às outras, a editora, com a conselheira ou a mulher, Pilar, que até poderão ser uma e a mesma pessoa, como as que se vêem nos espelhos, que sendo as mesmas, não o são na realidade, ao sugerir-lhe, ela também, mas por maioria de razão, por estar mais próxima que qualquer pessoa, um final diferente para o “Ensaio sobre a Cegueira”.
Quem está a escrever este texto, não quer ter os louros de uma imaginação fértil, como se fosse um coelho tirado da cartola do mágico, que antes estava vazia, como vazia ficará depois de cumprir a sua missão de voltar à cabeça do seu dono, ou da terra virgem donde nasce uma flor, que, não sabendo, sabemos que estava lá uma semente, porque se lembrou do lançamento do “Ensaio sobre a Cegueira”, exactamente a 16 de Outubro de 1995, com o lamento de não poder precisar a hora em que me ocorreu o pensamento de perguntar ao laureado autor, se alguma vez lhe terá ocorrido um final diferente para o referido Ensaio, e não outro qualquer, porque não teria cabimento estar a misturar alhos com bugalhos, como poderia acontecer se eu, ao falar de coelhos, me lembrasse da competência com que o próprio se avalia ao desnocar a nuca dos pobres leporídeos com uma pancada seca do cutelo da mão…( pag. 176)
Por muito que a imaginação dos homens ainda não tenha dado sinal de esgotamento, se esquecermos aqueles escritores ou pintores, para não falar de outros que poderão sofrer da mesma doença que a seguir descrevo, que depois de escreverem um livro ou pintarem um quadro, bem recebido pela crítica, e dos quais terão recebido fartos proventos, continuam a escrevê-lo e a pintá-lo de diferentes maneiras para serem sempre iguais, ainda podemos pensar que a mulher do médico, em vez de ficar a ver tudo branco, podia continuar com a visão para acompanhar o seu marido, como fez durante a doença inexplicável de toda a gente. Não seria de admirar que, à semelhança do editor, agora poderia ser o agente artístico, logo se levantasse a sua voz a criticar o final feliz, a história cor-de-rosa, o que não seria de todo inesperado, porque todos nós sabemos que o povo tem sempre razão e foi ele que disse, Preso por ter cão e preso por não ter, de acordo com os latinos que já diziam, sabedores que eram, Vox populi, vox Dei…
Para evitar as críticas, como um maometano evita a carne de porco, seria natural que a mulher do médico, embora não goste de tratar assim a heroína de um livro, não me atrevo, se não se atreveu o seu galardoado criador, porque não quis, eu, talvez porque não posso, a dar-lhe um nome, acabasse por sentir que era desleal para os seus companheiros e mormente para o seu marido, que como se sabe também deve ser companheiro, manter o dom da visão e, se aproveitasse das competências dele para fazer a operação que a tornasse igual a todos, e prescindisse dela, dado que em ocasiões já relatadas, a tinha forçado a ver aquilo que não queria.
Esta hipótese, se acaso ocorreu ao nosso agraciado autor, seria liminarmente recusada porque como soe dizer-se, gato escaldado da água fria tem medo e seria um final que conduziria, mesmo o leitor mais desprevenido, para o conto “Em terra de cegos…” (edição portuguesa da Padrões Culturais Editora, de 2008), de H. G. Wells, em que num vale longínquo e quase inatingível, todas as pessoas são cegas há catorze gerações, e por isso já não sabem que são cegas, até chegar um viajante, que lhes fala do mundo exterior e lhes tenta explicar o que é a visão, mas sem resultados, porque também não seria nada fácil explicar a um morcego, se acaso pudéssemos comunicar com ele, que tem capacidades sensoriais como o sonar, que nem eu nem o leitor têm, apesar de o homem o ter inventado para os navios e os submarinos, e agora para as bombas inteligentes, para prescindir dos seus atributos naturais, em compensação duma visão, para ele desconhecida, de tal maneira que seria o desventurado viajante a eliminar a sua visão, como se extirpasse um tumor doentio, que não era de onde vinha, para não ficar prejudicado em relação aos seus agora e para sempre conterrâneos, como poderá confirmar um leitor mais descrente, se se der ao trabalho de ler o conto, como foi escrito pelo seu criador.
A páginas 310 do Ensaio sobre a Cegueira, a mulher do médico, a que não tem nome, o que não deixa de ser estranho para quem escreveu um livro com o título ”Todos os Nomes”, ou talvez não, se por hipótese os gastou todos, diz, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.
Um leitor mais informado, começaria a achar demasiado óbvias as semelhanças com a “alegoria da caverna” de Platão, o que não sendo um mal em sentido abstracto, começaria a ser um problema para um autor que escreveu “A Caverna”, inspirado na outra, a de Platão, se nos lembrarmos do que foi dito sobre, agora esquecemos os pintores, escritores que vão reescrevendo a mesma obra, só, e não será pouco, pensarão alguns, porque foram vendidos muitos milhares de exemplares, e ganhou alguns prémios de nomeada, talvez o Nobel.
Como por mim já foi escrito, não serei eu a outorgar-me o direito de ser considerado alguém com uma imaginação acima do mais comum dos mortais. Por isso, tenho de encerrar as hipóteses de final para uma obra, que tendo muitos finais à sua disposição, por muitos e bons motivos, como acima tentei explicar, teve o único final possível.
As últimas palavras escritas foram, A cidade ainda ali estava.
Os livros também!
Texto de António Tapadinhas
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15 comentários:
Quem é o autor do texto?
???
António Manuel Lopes Tapadinhas!
Abraço,
António
Obrigado.
Satisfaz a minha curiosidade: Porquê a pergunta?
Abraço,
António
Dizer-te, antes de mais, que ainda não li o texto.
Primeiro, foi automático e fiz a pergunta.
Talvez porque gosto de saber de quem são as coisas que leio. Talvez porque sob anonimato vale tudo nesta coisa dos blogues.
Segundo, pensei nos teus pontos de interrogação para não responder a quente. E aí, achei para comigo que os textos deviam ser assinados. Pois se somos tantos, convém saber quem escreve.
Terceiro, pensei: porque não deixei, simplesmente, a coisa sem ser assinada? Respondi-me que tenho o direito a perguntar e que se nos pusermos todos a escrever sob anonimato vai ser uma grande salganhada.
Quarto, perguntei-me: Mas será que se alguém quiser escrever sob anonimato não deve ter esse direito? Tive dificuldade em responder, mas sempre me remeti para o final da terceira pergunta.
Quinto, pensei que não tinhas gostado do Fernando Nobre e da acentuação do vegetarianismo... mas não soube responder.
Sexto, pensei que pelo menos podias preencher a etiqueta...
Sétimo, esta tarde e noite estarei ausente. Quer dizer, se acaso não responder logo é porque já terei saído.
Oitavo, gostei de ver a provocação do Saramago. Está giro, foi uma proposta das boas e, está visto, que não foi daquelas propostas mandadas para o ar que depois não se fazem.
Nono, aprecio muito a tua frontalidade. Se há coisa que não gosto é dos que são muito amigos, mas depois é só jogar à defesa. Fico feliz por, nitidamente, não ser o teu caso.
Aquele Abraço,
Luis.
Luís Santos: Peço desculpa porque não percebi qual a razão da pergunta! Agora, já percebi!
Estou habituado a escrever no meu blogue, sem assinar os textos e sem mencionar o criador dos quadros, que são meus, desde que não diga qual o autor.
Podes verificar que nunca assinei nenhum dos textos, do Estudo Geral incluindo, por exemplo, "O velho que fazia cestos". Fui agora ver e nem sequer o desenho tem lá o nome do autor - António Tapadinhas - erro que vou reparar já a seguir.
Vou verificar as restantes entradas e colocar o nome do autor.
Não sei porque ligaste esta minha falta com Fernando Nobre e o vegetarianismo...
O engraçado é que estive a ler o artigo em que é escrito - "Quando comemos carne, estamos destruindo as florestas e, portanto, estamos comendo a carne da nossa Terra Mãe. Todos nós, inclusive as crianças, podemos perceber o sofrimento dos animais criados para produzir alimento" - de Paulo Borges, e dei por mim a considerar que nunca tinha visto o problema por este prisma!
Espero que esteja tudo esclarecido!
Já agora: Gostava de ter o teu comentário depois de leres o texto!
Abração,
António
Luís Santos: Como me parecia todos os textos e imagens não tinham a indicação do seu autor.
Já corrigi essa lacuna.
Abraço,
António
Saramago, essa espinha encravada na garganta de Cunhal e, curiosidade da vida, na daqueles que o odiaram também.
Sempre me fez lembrar um pouco Bukharine. Nesse sentido, o percurso que fez depois da queda do muro de Berlim que deixou tanta e tanta gente cega de espírito é, no meu modesto ver, caricato e exemplar. Não teve o desfecho trágico do velho bolchevique que referi, mas partilhou-lhe a tragédia de uma vida devotada à transformação do mundo na demanda de um amanhã melhor.
Sei que hoje tem biógrafo, mas oficial, sendo pois natural que a sua vida apareça recheada do heroísmo e da santidade que os olhos sempre concedem àqueles que veneram. Porque pena incontornável da literatura portuguesa, um dia virá que a sua biografia será objecto de uma atenção distanciada e só então veremos o homem em toda a pujança das respectivas forças e fraquezas.
A dúvida que assusta é se a obra ganhará então a alforriaria em relação àquele que a criou e se permanecerá como uma das ferramentas de reflexão que a Humanidade usa para se ir pensando.
Até lá, há que fazer o que estás fazendo, conversar a respeito da mesma que foi o que fizeste, mesmo na forma de uma espécie de solilóquio. Aquilo que afirmas, o modo como o afirmas e aquilo que a partir daí se pode pensar, é muito simplesmente um convite para que pensemos na literatura que nos legou.
É a melhor homenagem que se pode prestar a um Escritor, mesmo quando não gostamos, nem concordamos com ele.
Ora aqui está um post que merecia um grande destaque entre todas as loas que o negro da morte fez derramar sobre a memória do homem. Eis um bom exemplo do que poderia ser uma bomba blogosférica, não como as de explosivos que só destruição deixam atrás de si, antes como as que perturbam e causam inquietação, tal qual aquela que nos cantou o Branco, José Mário de trato e que servem para melhorar a alma e o carácter.
Deixo pois aquele abraço, companheiro
Luís
António Tapadinhas, cá vai um pequeno comentário ao texto:
Não li os "Cadernos de Lanzarote". Não sei qual a data em que o Saramago escreveu essa tontaria sobre os editores. Mas se o escreveu foi porque o deixaram com "grão na asa" como imagino que qualquer autor que dá fortunas a ganhar se deve sentir. Digo tontarias, porque não sei como um Nobel se permite conviver com palpites frouxos sobre uma tão valiosa peça literária...
E sobre o Memorial do Convento não me alongarei mais, deixei-o na página 111, porque sim...
O mesmo se poderá dizer do "Ensaio sobre a Cegueira". Mas meter a mulher e companheira, se percebi bem, no mesmo saco, que o tal editor, já não me parece ter o mesmo significado. À luz da vela, de uma companheira de vida, tudo é tolerável, até mesmo as propostas mais tolas para uma obra de laureado. Mas aí percebemos que as palavras proferidas pelo autor ganharam um tom com diferente melodia. O amor e o carinho pela jovem mulher que lhe ganhou a vida.
Não vi o filme, li o livro. Devo dizer que não constituiu grande novidade. Mas como é preciso estar sempre a repetir as mesmas verdades, porque a memória dos homens é curta e alguns não chegam sequer a ter memória, então aceita-se e agradece-se ao distinto autor a recordação do Platão. Agora fazer conviver o Platão com o Staline e o socialismo russo, sendo que o nosso homem não gostava (muito) do Staline, aí é que está o problema.
Não me encantou a postura ideológia do Saramago, como aquela que li no discurso proferido no Fórum Cultural José Manuel Figueiredo, na Baixa da Banheira, mas encantou-me a coragem por alguns actos de cidadania como, por exemplo, a crítica aos judeus no vergonhoso conflito do médio oriente que perdura muito mais do que é aceitável...
Enfim, tens jeito para a crítica literária. Se um dia isto for ao ar, deixarem de te pagar a reforma e te aborreceres com a pintura, o que como é sabido é por demais improvável, já tens como ganhar a vida.
A cidade ainda cá está.
O colóquio sobre Saramago está a tornar-se uma delícia e um completo deslumbramento para mim, o acompanhamento desta tertúlia entre os meus doutos companheiros do Conselho Editorial.
Luís Gomes:
Sempre me fascinou a maneira como alguns escritores jogam com as palavras e os sentimentos. Mais tarde, transferi essa admiração para os pintores que transformavam as cores em sentimentos.
As regras gramaticais são para serem cumpridas, tal como os tratados sobre a cor. Se para escrever e pintar, bastam algumas regras, para quebrá-las conscientemente, parece-me necessário sabê-las com mais precisão.
Entre Saramago e Lobo Antunes, eu opto pelo Lobo. No entanto, li todos os livros de Saramago sem esforço, direi mais, com prazer, e do Lobo, tanto que gosto de lê-lo, e dos livros que comprei e me foram oferecendo, não completei nenhum (para ser sincero li algumas páginas salteadas). Completei a leitura dos seus três primeiros romances que, de alguma maneira, relatam a sua
experiência em Angola, na Guerra do Ultramar, como Tenente e Médico do Exército Português. Dá para perceber porquê...
O Lobo actual obriga-me a estar atento; não o posso deixar por um momento, porque já sei, tenho de voltar ao princípio, farejando os trilhos labirínticos que me levaram àquele ponto. Já não tenho dentes nem paciência: preciso de presas mais fáceis de apanhar!
Onde nos levam as conversas escritas!!!
Abraço,
António
Luís Santos: A descrição desse facto está no Caderno III (edição 1998), no mês de Dezembro.
A página 111, na edição que tenho do Memorial... começa com:
"Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita", falando logo a seguir do Padre Bartolomeu Lourenço que regressou da Holanda, depois (quem sabe?) de descobrir um segredo. Apetece-me dizer, eu também, mas para descobrir o segredo de Van Gogh. Vamos a ver...
Qual a obrigação de um laureado com o prémio Nobel ser perfeito, fora da área da sua competência? Nem sequer na área específica em que é premiado. Há variados exemplos de má utilização de invenções que deviam ser maravilhosas... Na sua génese o prémio nobel resultou da invenção de um explosivo...
Quem torto nasce...
Tenho de te agradecer as palavras finais! Mas... vejo-me mais como criador de pássaros...
rsrsrs
Abraço,
António
aliusvetus: Obrigado!
A tertúlia está aberta e toda a participação é bem-vinda!
Abraço,
António
Eu só não participo porque não conheço o universo de que se fala.
Participarei noutros.
abraço a todos.
Croca
MJC: Excesso de modéstia.
Na minha resposta a Luís Gomes até falo de Lobo Antunes...
matéria sobre a qual és especialista, se bem me lembro...
Se no País as pessoas só falassem do que entendem, havia um silêncio ensurdecedor...
Abraço,
António
Abraço,
António
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