Direito de profanação
“A racionalidade intrínseca de uma civilização confere uma validade universal à sua cultura e permite-lhe impor as suas luzes às outras civilizações”(1) , afirma Laurent de Briey em O conflito dos paradigmas.
Como cultura dominante –e com a «boa consciência» de sentir-se sob a proteção divina, que Eduardo Lourenço identifica em O esplendor do Caos(2) – podemos profanar as crenças e conhecimentos de outras culturas, mas não será aceite que essas culturas ‘inferiores’, abandonadas do ‘deus verdadeiro’ (capital, religião, filosofia, bem-estar) ousem ofender os nossos valores. Profanamos o silêncio dos que pensam e não suportamos que os seus pensamentos esclareçam a nossa confusão; desrespeitamos o espaço sagrado dos outros e irritamo-nos quando se aproximam do nosso templo.
Na cultura islâmica, o termo ‘música’ está reservado à vida secular e mundana, portanto não pode ser utilizado num espaço de oração como uma mesquita(3). Se insistimos em chamar música à recitação melismática do Alcorão, estaremos a cometer um ato de impiedade, um sacrilégio.
Para um ator, como para um músico, o seu território sagrado, de veneração e respeito, é o palco e não deveria ser profanado. Mas quando se profana aos criadores vivos, roubando ou ignorando seu trabalho, a sociedade europeia situa-se na condição de consumidora passiva de uma ideia de cultura-comércio dominada pelo poder da mass media usa-americana.
Todos temos os nossos sacrários, onde arrumamos as coisas que retiramos da esfera pública, protegendo-as com o direito à privacidade. Ofende a dignidade humana quem as restitui ao uso profano sem consentimento(4).
Qual o direito que nos autoriza a profanar a cultura dos outros? Acaso a intranscendência da cultura pós-moderna? Eduardo Lourenço diz-nos que “à globalização ideológica e política sucedeu a forma de poder mais sedutor que os homens inventaram: a globalização cultural”(5). O cultural é mais do que ópio para o povo e quem é proprietário do imaginário, com um poder de sedução sem igual, é virtualmente o senhor do mundo. O cultural deixou de ser a imagem e o esplendor de uma economia para se transformar numa mercadoria de rendimento infinito com a culturização de todos os objetos de consumo(6).
Na mochila dos soldados americanos viaja esse ópio culturizante em forma de musiquetas, pastilha elástica, coca-cola ou comida lixo que seduz as vontades dos indivíduos num simulacro de satisfação. O manto sublime do cultural cobre todos os conteúdos da existência numa “feérie cultural permanente” que E. Lourenço diz ser “puramente decorativa e fantasmagórica”(7).
Octávio Paz, ao longo da sua obra, fala de um futuro no que a humanidade se dividirá em dois: os que leem e os que veem televisão. Talvez agora seja mais elucidativo falar dos que defendem a cultura e dos que a profanam.
(http://www.soutelo.eu)
(Vila Praia de Âncora: 20-XII-2010)
(1)Briey, L. d. (2009). O conflito dos paradigmas. (R. Pacheco, Trad.) Lisboa: Instituto Piaget, p. 26. (2)Lourenço, E. (2007). O Esplendor do Caos (5ª ed.). Lisboa: Gradiva, p. 95.
(3)Wade, B. C. (2004). Thinking Musically. New York: Oxford University Press, p.6
(4)Agambem, G. (2006). Profanações. Lisboa: Cotovia.
(5)Lourenço, E. op. cit., p. 120.
(6)Ibid., p. 22
(7)Ibid., p. 124
(8)Queiroz, E. d. (1980). A correspondência de Fradique Mendes. Lisboa: Europa-América, p. 79.
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