terça-feira, 1 de novembro de 2011

INTIMIDADES



GUARDA-RIOS

A grande mancha de água que vai e vem com a respiração do oceano, ora deixando um lamaçal esporadicamente serpenteado por linhas de água corrente, ora luzindo pela acção do Sol ou reflectindo palpitares nebulosos em trânsito pela profundidade do azul atmosférico, líquido salgado que deforma a quase albufeira ao atirar-se pela planície dentro, em meandros formados pelo encontro da geometria de arranjos aquíferos e a fronteira natural saída da deposição dos elementos e da colonização vegetal, na pessoa das salgadeiras e variadíssimos pequenos exemplares das floras dos estuários mediterrânicos.
Em frente o céu descai por detrás de um alinhamento de copas sarapintadas pelas silhuetas tridimensionais de hangares plúmbeos, pequenos brinquedos pela força da distância, separadas das esbranquiçadas ondulações por um contínuo de verde.
À direita, do lado onde a aurora se manifesta, na enfiada de um casario multicolor que ladeia a comunhão da terra com o rio sobre uma espécie de abcesso de uma erodida ravina de argila crua, os esverdeados dos tufos arbóreos e dos campos de pasto e de cultivo, interrompem-se, aqui e ali, pelo efeito de um moinho de maré ou de casas quintãs, pluriformes e de cores diferentes.
Consoante vamos rodando, para lá do sapal, no fundo de miniatura, a mescla de casas térreas e prédios, geralmente baixos, um canteiro de torres além, outro acolá e, no fim do avistamento, serrania velha, toda ela verde que, no poente, é abruptamente suspensa pela perpendicular da mancha urbana da periferia e da grande capital, em que um braço industrializado se afoita em istmo pela superfície líquida.
O silêncio feito do arfar de Bóreas, materializado nas ervas e nas ramagens dos arbustos. Uma vez por outra, voos e berrarias de gaivotas, amiúde, piares vários, sobretudo de asas marinhas e, como ruído de fundo, quando a praia mar está distante, permanente e imparável, o fervilhar dos poros do lodaçal.
Aquando da Primavera, é ver o chão explodir em arroxeados minúsculos ou amarelos e brancos que salpicam os acastanhados e o negrume onde impera o verdume rasteiro e perdemo-nos das coisas civilizadas que, daí a pouco, novamente se nos imporão para o sufoco do circo quotidiano.
Mas, por instantes, não custa nada desligarmo-nos daquilo que nos atrofia. No cheiro que do solo brota e paira no ar, renovamos a carne e o espírito para aquilo que tem de vir.
E se, por acaso, nos deixamos ficar até que a abóbada celeste se alaranje, dias há, em cada mês, que podemos ter a sorte de ver o disco lunar amarelando uma esteira imaterial na calmaria de uma das serpentinas espelhadas do estuário.

Alhos Vedros, 26 de Fevereiro de 1996

3 comentários:

luis santos disse...

Alhos Vedros, aqui mesmo junto ao Tejo, onde as águas do rio nos chegam empurradas pelo vai vem do mar, tem destas coisas como só acontecem nos filmes.

belo estudo.

A.Tapadinhas disse...

Acontecem nos filmes, nas fotos e em certas pinturas, de quem perde tempo com estas ninharias...

...tão importantes!

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Do pão ao esquecimento, foi esse o movimento do Tejo na consideração do homens, ao ponto de hoje ser isso mesmo, uma ninharia que pouco mais oferece para lá da paisagem em que se cristalizou à época do desenrolar deste filme do tempo que é o "Intimidades". Não sendo gente, não é por isso que deixa de estar lá, no lugar dele e, por inerência, neste lugar da literatura; fosse ele gente e naturalmente seria uma das personagens.

Para o Luís e o António, aquele abraço

Luís