terça-feira, 22 de novembro de 2011

INTIMIDADES


O PEDIDO DE NAMORO

Não tenho dúvidas que a infância nos marca de uma forma indelével. Para o bem e para o mal, são situações que vivemos nessa idade mítica, o facto de termos sido felizes ou não, é isso que, muitas vezes, vem a determinar aquilo que vimos a ser e a conseguir em adultos, o nosso ânimo e forças e ainda a pertinácia ou a ausência dela, para atingirmos aquilo que queremos na e da vida. Não sou psicólogo nem, de qualquer forma, perito na matéria, mas penso assim por intuição e, na verdade, é ao longo desses anos que começamos a lapidar os tijolos mais fundos do nosso carácter. Quantos não são os casos em que as primeiras impressões recolhidas nesses dias nos impõem a massa com que alimentamos pontos de vista futuros?
Pois eu, do paizinho, guardo na memória a recordação de uma imagem dúbia. Lembro-me bem do pai jovial e inundado de sentido de humor nas respostas que dava ao quotidiano, o pai que gostava de conversar com os filhos e de lhes ouvir as opiniões e de os ver afirmarem atitudes, nesse sentido, o pai liberal que nos acompanhava numa caminhada e nos deixava caminhar sozinhos e que eu, nas minhas fantasias de miúdo, gostava de vestir com a despreocupação rebelde dos períodos balneares. Mas também recordo o rosto bem demarcado pelas gelhas de alguém capaz de viver com pouco, muito pouco, e jamais olvidarei as expressões do homem autoritário, aquele que nunca abdicava da possibilidade da última palavra e que agia como o guardião de algumas regras cujo incumprimento nos fazia correr o risco da punição que só por razões de justiça não era posta em prática. Esse era o pai dos fatos completos, do colete e da gravata que, aqui e ali, esperava por nós para nos julgar.
“-Sentença de Salomão…” –Dizia ele com a teatralidade que tinha tanto de sério como de boa disposição, para com isso destacar a importância das palavras e, simultaneamente, desdramatizar-lhes as consequências. E proferia a decisão e a opinião que podiam ou não trazer o castigo.
Era o pai que nos repreendia a indelicadeza, embora se limitasse a discutir as ideias connosco. Aquele que nos proibia a preguiça mas nos deixava brincar. E ainda aquele que nos impunha horários a respeito dos quais desprezava por completo as nossas vontades.
Associada a isso está também a recordação que dele tenho como homem de palavra, quer na dimensão daquele que fala verdade e cumpre com o que diz, quer na da pessoa que faz um uso predominante dessa ferramenta na sua relação com os outros. Quando me remeto para a infância, um quadro que reponho é o do paizinho, à mesa, comunicando-nos a sua leitura de certos acontecimentos, com aquele ar de quem fala de descobertas científicas, ou então vejo-o sentado, dada a regularidade do facto, melhor seria dizer, recostado, no seu cadeirão pessoal, espécie de mesa de colóquios da sala de estar, local onde a família partilhava uma boa parte dos momentos de lazer.
A verdade é que havia a obrigação de todos estarmos em casa por volta das sete da tarde, apesar do jantar se realizar apenas uma hora depois. Era a ocasião em que o paizinho aproveitava para indagar sobre o dia escolar e civil dos filhos e no que restava desse noticiário impreterivelmente diário, era também o tempo apropriado para ele nos dar lições em torno dos mais variados problemas, com isso, em parte, esperando fazer de nós indivíduos responsáveis e sérios. Às vezes, afundava-se no cadeirão e, como se estivesse de olhos fechados, discursava até que a mãe, ora aproveitando uma pausa, ora recordando o adiantado da hora, nos fazia sentir a necessidade de nos sentarmos para a refeição.
O paizinho era, para mim, esse misto de um conselheiro amistoso e juiz, essa ambivalência entre o professor e o polícia.
Hei-de guardar para sempre o episódio da concessão da autorização para o namoro da minha irmã mais velha e estou certo que ele bem ilustra tudo quanto escrevi anteriormente.
Depois de ver bem sucedida a sondagem prévia junto da mãe, teve ela a agradável surpresa de ouvir o pai convidar o rapaz para jantar, no imediato à comunicação da intenção de com ele falarem, tendo em vista o beneplácito à união que ali, formalmente, pretendiam iniciar.
E aquele que viria a ser meu cunhado lá apareceu, numa noite de Sábado, com o protocolado propósito de, primeiro jantar com a família e depois se deslocar até ao escritório, onde deveria acontecer a incontornável entrevista do consentimento.
É claro que pelas interpretações superiores, não seria isso um motivo para quaisquer mudanças nos hábitos familiares, antes pelo contrário e, como seria de esperar, também o rapaz ficou sujeito à pontualidade das sete e a presenciar a ronda biográfica da jornada. No entanto ele era jovem e encarou isso com espírito desportivo e disposição de pescador. Mas o que ele não contava é que o paizinho tinha outros planos.
Acabou ele por aproveitar aquele momento para expor aquilo que achava deverem ser os papéis dos homens e das mulheres no até e pós casamento, no que deve ter elaborado uma palestra toda ela feita de minúcias analíticas e exemplificativas.
Tenho bem presente que todos nós estranhámos que, naquela tarde, o interrogatório tivesse sido tão rápido. Mas quando passada mais de uma hora a mãe nos fez um sinal discreto para que nos dirigíssemos para a mesa, já então tínhamos compreendido que, afinal, a vontade inicial era propiciar ao candidato uma daquelas aulas de preparação para a vida autónoma.
Como é fácil de adivinhar, apenas a visita ficou na sala, mãos sobre as pernas, escutando atentamente a prédica de quem, olhos postos no tecto, nem mesmo dera conta da debandada geral.
Eu não sei o que sentiu quando o paizinho deu por finda a oratória, mas tenho a certeza que o espanto lhe deve ter obliterado o alívio quando, ainda sentados e por entre um vigoroso aperto de mão, lhe escutou a exclamação final:
“-É pá! Que coisa impressionante” –Começou o meu pai circunspectando com olhos franzidos. “-Não me diga que o ilustre jovem foi o único que ficou aqui a ouvir-me.” –E, nesse instante, o pretendente deve ter engolido em seco com a brevidade da pausa que se seguiu. E não saberei dizer o que possa ter sentido com a continuação do reparo: -Ora então confirma que veio cá para pedir a minha anuência a que se entenda de namoro com a minha filha?” –Perguntou-lhe enquanto se erguia e com isso incentivando o outro a fazer o mesmo. “-E está certo quanto aos sentimentos que tem a seu respeito, não é assim?” –Acrescentou, na realidade, sem qualquer hiato. “-Pois muito bem, fique sabendo que tem a minha permissão.” –E voltou a estender-lhe de imediato a mão direita.

Portel, 20 de Abril de 1998

2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Não tens dúvidas tu, escrevinhador de "Intimidades", que chamas de idade mítica à infância, como eu não tenho dúvidas que foi tão grande o salto nos usos e costumes, que só nós percebemos e sentimos o que explicas sobre os rituais de acasalamento então vigentes...

Tenta fazer perceber aos jovens de agora que os seus avós, por norma, que excepções sempre aconteceram, só se conheciam mais intimamente na noite do casamento...

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Bem, deves estar a falar de uma literatura que eu desconheço muito embora, em tais contornos, seja facilmente reconhecível como aquilo que seria uma espécie de literatura para mentecaptos. Se o jovem(ns) leitor(es) (a falta de inteligência deve ser sempre referenciada com minúsculas) não conseguir compreender que aqui se trata de isso mesmo, um remeter para tempos de antanho em que as coisas -e os rituais, já agora- eram diversas e diferentes daquilo que são os códigos da(s) sua(s) experiência(s) comum(ns) e se não perceber que simultaneamente recebe uma -entre outras, certamente- representação possível desses tempos pretéritos, então deveremos recomendar-lhe -por uma questão de método de treino e aprendizagem da(s) leitura(s) que também se aprende e treina- que volte -se é que alguma vez por lá passou- às histórias da carochinha ou, provavelmente, até do Noddy.
Ninguém escreve para um Leitor que não seja inteligente pois, se assim fosse, a Literatura seria de todo impossível na medida em que necessitaria de livro de instruções que é uma das características da má literatura que jamais se deixou de fazer por esse mundo.
Seja como for, sejamos mais justos com a rapaziada dos nossos e nessa medida devo dizer que pessoalmente não acredito que -é claro que fora do domínio da cretinice- desde o momento em que sejam devidamente literados -o que é diferente de alfabetizados e infelizmente não em percentagens tão elevadas quanto seria de desejar na sua relação dentro deste último universo- os nossos jovens de hoje não sejam capazes de compreender essas particularidades da diferença entre o mundo que experienciam e os dos seus avós; podem muito bem não ter conhecimento do como era, é natural que assim seja, mas seguramente serão capazes de compreender como era, desde que para isso tenham informação e entre esta, porque não dizê-lo, estes pequenos quadros que compõem "Intimidades" darão o seu contributo. Claro está, sempre a pensar nos Leitores inteligentes que para os outros há as máquinas de escrever a escrevinhar muuuiitas páaginaas.

Aquele abraço, companheiro
Luís