terça-feira, 29 de novembro de 2011

INTIMIDADES


UMA AULA DIFERENTE

À
memória do
Capitão Salgueiro Maia

“-Bem meninos, pelo sumário já compreenderam que hoje vão ter uma aula diferente daquilo que é habitual. É do vosso conhecimento que amanhã passará o vigésimo quarto aniversário sobre o dia vinte e cinco de Abril de mil novecentos setenta e quatro e o grupo de História decidiu organizar uma exposição de fotografias tiradas nessa ocasião. Em princípio poderiam visitar a exposição com o vosso professor de História na aula que terão após o almoço. Provavelmente, o meu colega seria a pessoa mais indicada para lhes dar todas as explicações necessárias a respeito daqueles acontecimentos e para lhes fazer o enquadramento do que era o nosso país nesse passado, para os mais velhos ainda tão recente mas, para vós, simultaneamente muito distante. Neste sentido, talvez ficassem melhor esclarecidos pelo trabalho que eventualmente pudessem desenvolver nessa outra disciplina. Eu não ponho isso em dúvida e não quero estar aqui a pretender que, de qualquer forma, possa substituir o meu colega ao nível de que falei. No entanto, quer se concorde ou não com isso, está no espírito das leis que regulamentam o actual sistema de ensino em que vocês estão inseridos, que os professores, para além do tradicional papel de ensinarem determinadas matérias, devem também contribuir para a educação dos alunos enquanto pessoas. Eu acho isso bastante discutível, sou mesmo da opinião que é na família a que pertence que cada um de nós deve receber os princípios que nos devem conduzir as atitudes e comportamentos bem como a formação dos nossos caracteres. A nós, professores, competirá não atentar contra isso e nada mais. Já ao nível da educação cívica, isto é, da educação para uma vida em comunidade que parta do respeito pelo outro, já a esse nível me parece que é nosso dever ir um pouco mais longe e, pelo nosso comportamento, podermos servir de modelo para uma educação cívica exemplar. Pelo menos neste aspecto, também eu concordo que os professores têm alguma responsabilidade no âmbito da educação dos alunos; responsabilidade pelo exemplo de bom senso, mas igualmente pela tolerância e respeito pelas opiniões alheias. É certo que nem sempre isso acontece na realidade, mas justamente por isso eu ponho em causa o papel dos professores enquanto educadores. Mas adiante. Seja como for, é por causa dessa interpretação que actualmente se faz dos nossos deveres que eu, na qualidade de vosso director de turma e de acordo com aquilo que foi decidido pelos órgãos de direcção escolar, me proponho a acompanhar-vos na visita a esta exposição sobre o que se passou em Lisboa no dia vinte e cinco de Abril de há vinte e quatro anos.
E é importante que vocês ganhem consciência daquilo que sucedeu para que possais perceber a diferença fundamental que há entre vós e os vossos pais. É que eles cresceram num país em que aos homens não era deixado espaço para poderem atingir uma dignidade total. Com efeito, no regime político que então vigorava estava interdito ao comum dos mortais manifestar as suas ideias e opiniões sobre a vida social e política do país. Não era que não existissem pessoas que falavam desses assuntos. É claro que existiam, até pelo simples facto de haver imprensa e órgãos de comunicação audio-visual. Acontecia que a discordância ou seja, aqueles que manifestassem pontos de vista contrários àquilo que estava estabelecido, isso estava sujeito à repressão e ao silêncio. A oposição política, então, essa estava condenada à prisão e casos houve em que os protagonistas foram pura e simplesmente assassinados, como sucedeu com o senhor general Humberto Delgado que foi candidato à presidência da república há mais de quarenta anos. Ora acontece que isso era assim porque os homens do poder partiam do pressuposto que só a uns quantos era reconhecida a capacidade para decidirem o que era melhor ou pior para a sociedade portuguesa, entre eles, cabendo a um predestinado o papel de chefe supremo que melhor que todos os outros saberia interpretar aquilo que seriam os sentimentos e conveniências do povo. Pois isso é a tirania e em última instância ela acaba sempre por proteger os poderosos e, ao contrário, por deixar os mais fracos à mercê da vontade e dos caprichos daqueles. Nessa dimensão, meus meninos, há sempre a possibilidade de alguém ver a sua dignidade rebaixada sem que se possa defender. Daí que a tirania seja incompatível com a dignidade humana. Imaginem o que sentiriam os vossos pais e avós quando eram desapossados do seu ganha-pão e reduzidos à miséria pelos salários que recebiam, sabendo que os protestos visando alterar essa situação eram pagos com bastonadas e noites na cadeia.
A mim ensinaram-me que todos os homens são filhos de Deus e por isso mesmo igualmente detentores de uma dignidade incomensurável e inalienável, a qual, a não ser o próprio por via das suas próprias acções, ninguém pode diminuir ou espezinhar sobre pena de estar a atentar contra a própria divindade. Mas também podemos dizer que a vida humana é um bem insubstituível e que todos os homens, à partida, por serem membros da mesma espécie, têm um certo número de direitos iguais para todos. Em qualquer destas interpretações se reconhece a dignidade dos homens e assim podemos justificar a rejeição da tirania.
E foi contra a tirania que os homens que ides ver lutaram. Pela vossa parte, podeis dizer que eles devolveram as condições que hoje em dia nos permitem aspirar a uma vida digna. São homens que merecem todo o nosso respeito e admiração e, na maior parte dos casos, verdadeiros heróis que, depois do dever cumprido, nada quiseram para si. Perante esses, meninos, aqueles que arriscaram as suas vidas e seguranças pessoais e dos seus, perante esses devemo-nos ajoelhar em sinal de gratidão e admiração. Quer se tenha ou não gostado daquilo que se passou a seguir àquele dia, quer se concorde ou não com tudo isso, uma coisa devemos aceitar, é que aqueles homens, soldados anónimos e um capitão que preferiu a pacatez do anonimato, esses foram os heróis que nos devolveram a liberdade que é a única maneira de vivermos que é compatível com a dignidade humana. A esses, o nosso carinho e reconhecimento deve fazer-nos tirar-lhes o chapéu em sinal de máximo respeito.
Era isto que lhes queria dizer antes de sairmos para vermos as imagens que, espero eu, possam despertar a vossa curiosidade. Vamos lá.

Portel, 24 de Abril de 1998


2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Se esta aula fosse generalizada já não acontecia o desconhecimento que parte dos alunos têm quanto ao que se passou no 25 de Abril de 1974...

Mas não culpo só, nem principalmente, a escola...

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Ora cá está ela, publicada, para acerto da memória.

Aquele abraço, companheiro
Luís