UM OLHAR CIBERNÉTICO
Por
Abdul Cadre
Haverá quem duvide que o nosso cérebro, por si só, é despido de toda a memória, entendimento e vontade?
Eu estou em crer que este órgão complexo não passa de um codificador/descodificador das funções mentais, um emissor/receptor de pensamentos. Está no mais alto do nosso corpo como as antenas parabólicas estão nos telhados. É por isto que sempre me causou algum engulho ouvir dizer em certos meios que o ser humano só usa dez por cento do seu cérebro. Ora, sabe a ciência que isso não faz qualquer sentido. Quando ligamos um receptor de rádio, ele trabalha a cem por cento; ouvir uma estação em detrimento de todas as outras não diminui as funções do aparelho, apenas lhe caracteriza a atenção. Basta um pouco de raciocínio, usando todo o cérebro que nos coube, para concluirmos que todos nós, que cada um de nós usa a cem por cento e a todo o momento esse maravilhoso interface mental.
Ninguém dirá que um sujeito trôpego de andar só usa uma certa percentagem das pernas. Não. Ele usa-as a cem por cento, mas elas não têm a qualidade suficiente para se inscrever na maratona. Se não usarmos um determinado órgão, ele atrofia, mas dentro da sua atrofia ele estará no seu sítio por inteiro, até que desapareça, igualmente por inteiro…
Não é o órgão que faz a função, mas sim a função que faz o órgão. Se não fosse assim, os desportistas não treinavam, os estudantes não estudavam, ninguém cuidaria de se autovalorizar.
O cérebro não nos foi outorgado prontinho e acabado com uns quartos às escuras à espera da vinda do electricista. O nosso cérebro desenvolveu-se ao longo de milénios, correspondendo às necessidades da nossa evolução e em cada era sempre esteve a cem por cento, primeiro reptiliano, depois mamífero e agora hominal. A natureza serve-se muito da lei do menor esforço e da economia de meios.
As crenças e mitos mais comuns inerentes ao cérebro advêm, antes de mais, de se confundir cérebro com mente. Ninguém provou ainda que o cérebro pensa e, no entanto, é comum ouvirmos esta soberba afirmação: eu cá só penso pela minha própria cabeça. Ora, mesmo que se admita que o cérebro, chamado assim de cabeça, tem a faculdade de pensar, presumo que só um autista pensa exclusivamente pela sua cabeça, porque o natural e saudável seria pensarmos com o máximo de cabeças que conseguíssemos.
Nascemos no seio de uma determinada cultura e num dado ambiente que nos forma e condiciona. A própria língua materna se torna a pauta de pensarmos. Eis que um chinês não pensa como um brasileiro; o meu vizinho da frente não pensa como eu e eu pensaria de algum modo diferente do que penso hoje se o meu vizinho da frente fosse outro que não aquele.
Nos nossos dias, sabendo nós como funcionam os computadores, podemos tomá-los para analogia com o nosso próprio funcionamento, tendo sempre presente o seguinte: tudo aquilo que nós fazemos, inventamos, construímos, ou inclusive amamos, resulta de projecções, de exteriorizações de nós próprios. O homem acrescentou o seu braço agressivo com a invenção da espada e, achando-a curta, logo chegou à lança, à seta, à bala, ao míssil. Ampliou a memória com o computador e quer dotar o mesmo de inteligência artificial.
Mas vamos lá às comparações: admitamos, como defendem algumas filosofias, que o homem depende biologicamente duma energia universal que o penetra até ao mais íntimo das suas células (que muitos usam chamar de força vital) e que deve a sua consciência a uma emanação divina que se costuma chamar de alma…
Pois bem: no computador a alma chama-se software e é emanada dos deuses do Olimpo chamados programadores. A energia vital do computador vem da rede eléctrica, penetra no seu plexo solar, que é a fonte de alimentação, e espalha-se pelos seus órgãos e células. Por si só, o computador é uma máquina estúpida e inerte. O nosso cérebro também. O computador descodifica a matemática que lhe é própria como mente; o cérebro interpreta o que a mente lhe induz. O anjo da guarda do computador, que é o operador, liga-lhe a força vital, carregando no botão do «power» e faz correr a inteligência divina que é o sistema operativo. Depois, servindo-se das dispensas do Olimpo que são os diversos programas instalados no disco rígido, que é a subconsciência do sistema, põe-no a pensar velozmente. Na consciência, que é a memória de trabalho (RAM), o yin e o yang fazem a sua dança e até caminham pelo ciberespaço, se for caso disso, nesse artificioso campo morfogenético que chamamos de Internet.
Sou um anjo da guarda razoável, mas o meu computador portátil é um pouco fraco e um tanto trôpego, tem uma consciência muito limitada e o seu subconsciente deixa muito a desejar. É o seu e meu Karma. É por isso que ainda me sirvo de cadernos de apontamentos. Torna-se evidente que o meu portátil não serve para a maratona. Bem mais possante é o meu computador de mesa. Tem uma grande cabeça. Todavia, quer um quer outro, ambos trabalham a cem por cento, salvo qualquer vírus ou avaria que lhe afecte a mente ou lhe queime neurónios.
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