A VÉLHINHA
A “Vélhinha” é uma colectividade de raiz oitocentista, das muitas que há pelo sul do país, outrora pendendo mais para os domínios musicais e cénicos de que ainda hoje lhe resta o nome, actualmente sobretudo virada para a prestação de serviços desportivos aos sócios, em particular e à comunidade, de uma maneira geral.
O epíteto advém-lhe do facto de ser a mais antiga da região e, certamente, uma das pioneiras a nível nacional. Foi fundada em mil oitocentos sessenta e nove e, desde então, muitas gerações por ali passaram, crescendo, naturalmente, pela experiência cívica da vida associativa e, até, tão só, pelo lado lúdico de um copito ou de um pé de dança.
Ali há História, antes de mais documental, para que a historiografia se entretenha, mas bem mais importante na sua presença, sob a forma da iconografia variada, hoje em dia concentrada nas salas dos corpos sociais e dos gabinetes de trabalho, se bem que, pela minha meninice, estivesse então espalhada pelas paredes dos corredores e a divisória ampla que se repartia pelos espaços do bufete e dos bilhares.
Ninguém deve escarnecer destas casas e muito menos das pessoas que lhes dão vida e das realizações que aí levam a cabo. Antes pelo contrário, só as podemos entender enquanto bênçãos se considerarmos que, por via delas, os mais pobres souberam o que é a música e o teatro, tiveram à disposição diversos géneros literários e, prima dona, para uma pátria como a nossa, coitadinha, tão agastada de tiranias e olhos e ouvidos de várias raças de imperadores, primeiro que tudo, dizia, aí teve o povoléu a possibilidade de laboratoriar comportamentos e hábitos submetidos às regras democráticas de organizar as relações em comum.
Pois é, as meninas Alices dos telefones podem ser ridículas na dramaturgia, mas que mal vem ao mundo por causa disso?
Certo é que em tais repositórios de anedotas se ensinaram a cultivar responsabilidades a todos aqueles que por lá deixaram fruir as suas generosidades ou vaidades.
Não sou um especialista nesta temática e, tanto quanto sei, são poucos os estudos de carácter científico sobre estes fenómenos associativos. De qualquer forma e, desde logo, admitindo poder estar a sustentar patetices, diz-me a intuição que terão sido mais ou menos tais desideratos que estiveram na ideia que lhes deu origem. No caso da “Vélhinha”, não sei se por mola de algum estrangeirismo, fundada sob os auspícios de um tal Marquês de Sampaio que, à época, tinha fama de ser liberal, não devo errar muito sustentando que a sua constituição teve em vista proporcionar a recreação e a alegria às gentes do burgo, mas também, de preferência, no âmbito mais sociológico da cultura cívica. Pelo menos é o que se pode apreender pela leitura das actas das assembleias gerais do princípio do século e até pelas actividades registadas nas actas das sucessivas reuniões das direcções.
Pessoalmente, tenho a honra de ter sido, por um ano, o Presidente da Mesa da Assembleia Geral, cargo outrora exercido pelo meu avô e posteriormente pelo meu pai.
Foi por isso que tive livre acesso aos livros antigos e em eles soube, por exemplo, ter sido o coreto –o qual, sobre o umbral da porta, tem a data de mil novecentos e vinte- uma obra da iniciativa e labor das pessoas ligadas à banda filarmónica, com a curiosidade de, na angariação de fundos, ter o auxílio de uma comissão de meninas, presidida pela menina Laura Valentim que, mais tarde, viria a ser a professora que, entre reguadas e orelhas de burro, por mais de uma trintena de anos, ministrou o primeiro grau à gaiatada da vila. Mas também lá estão historiografados os intercâmbios com as irmãs de outras terras, como o ilustra o passeio à simpática vila das Caldas da Rainha, para usar uma expressão dos próprios anais, do qual constou um agradável pique-nique, como visita de retribuição pelo concerto que os homens de lá tinham dado para os meus conterrâneos no Verão anterior. E até a zaragata em que o tio João Mosca enfiou o trombone pela cabeça do Manelinho sapateiro e da qual veio a resultar a cisão na filarmonia que acabou por dar origem a uma outra colectividade, isto nos anos da guerra e a propósito de uma pirraça que algum germanófilo fez com a queda de Dunquerque.
Desde que me conheço frequento aqueles tectos. Primeiro pela mão paterna, mas rapidamente por moto próprio, ali me fiz mestre de carambolas, namorei e, em parte, me fui fazendo homem.
Como tudo na vida também a “Vélhinha” já mudou o rosto e os interiores e em nada se assemelha com os espaços que na minha memória têm guarida.
Hoje deambulo por lá com o mesmo à vontade que o faço em qualquer outro lugar e não sei se a miudagem ainda sente o peso da obrigação de fazer silêncio. Mas a memória da minha infância prende-se, precisamente, com essa possibilidade de escutarmos o tiquetaque do relógio de parede que estava no bar. A televisão, quando apareceu, tinha o seu próprio destaque por sobre uma mesinha com mais de dois metros de altura, a fim de ser avistada de todas as cadeiras da plateia que, à sua frente, se alinhavam numa parcela do salão de baile.
A menos que tudo estivesse em festa, havia sempre alguém que velaria para que o sossego dos sócios não fosse perturbado.
A mim, eram a sala de leitura e a biblioteca que mais respeito me incutiam. Não sei se pela presença dos homens que, na primeira, sempre estavam atentos ao diário ou conversando em voz baixa, se pelos retratos, alguns amarelecidos, de bigodões anónimos que passavam à posteridade por obra do mérito, não sei se por uma coisa ou pela outra ou ainda se pelo facto de o meu primo Zé Carlos ensaiar previamente o pedido do livro que queria, justamente, à porta de entrada, sempre que aquelas vidraças pintadas me deixavam avistar as cadeiras de recosto ou as estantes, sentia aquilo que agora poderia definir como uma inibição comportamental e, de mãos nos bolsos e cabeça baixa, ali estava eu apenas quando isso era necessário, tão só perguntado o imprescindível e, de resto, limitando-me a falar apenas em face das perguntas.
No fundo, sabíamos que os mais crescidos não gostavam nada de serem incomodados pelos garotos.
Alvalade do Sado, 27 de Fevereiro de 1996
2 comentários:
Fazes um pouco da história duma colectividade, naquela parte em que não se sabe bem onde está a História ou a vivência que temos com ela.
Curiosamente, tenho no próximo sábado a apresentação dos Sargos na SFUA, sociedade filarmónica união agrícola, do Pinhal Novo, que também já pode ser considerada Velhinha, dado que a fundação desta colectividade foi em 06/12/1896.
Esta sociedade é paredes meias com a casa de meus pais, onde eu vivi até 1965. Tão paredes meias que eu e meus irmãos saltávamos do muro do nosso quintal directamente para a sala dos instrumentos e ensaios da Filarmónica da Sociedade...
E destas memórias se vai tecendo a nossa vida!
Abraço,
António
Da mesma maneira que a Língua é a base em que podemos ver retratada toda a Cultura, a História é o pano de fundo em que ecoam as histórias dos homens simples, como são as personagens que dão corpo a este romance. Assim foi essa mistura -se assim posso falar- intencionalmente procurada em alguns dos quadros que o compõem, como é este um desses casos. Sebastião Sorumenho tratou-se de um projecto de literatura realista e em tal quadrante, a ficção também se constrói pelo manuseamento de materiais que, uma vez abstraídos a partir da realidade, após o tratamento de imaginação que eventualmente mereçam, podemos muito bem juntá-los àquela e aí os misturando, criarmos com isso uma representação da realidade em que aqueles aparecem como se, de facto, fossem simplesmente verdadeiros. É esse um dos caminhos que podemos seguir para obter a verosimilhança da narrativa e, quando estamos a falar de personagens, a credibilidade das mesmas. Neste sentido, tenho para mim que é elegante quando a(s) história(s) tráz(em) consigo uma espécie de cunho da História e isto, sem que necessariamente estejamos a falar de romance, novela ou de contos históricos. Desde o início e até pela sua própria natureza, sempre Sebastião Sorumenho me pareceu um espaço ideal para este género de experiências.
E é precisamente por ser destas memórias que se vai tecendo a(s) nossa(s) vida(s) que este género de ficção fica mais rica se igualmente delas se for tecendo. Pobre será aquela se se limitar a imitar a vida pois, como espelho da mesma que -para meu gosto- se procura construir, importa pois que a reflicta, para que a partir dela possamos reflectir sobre os mistérios que lhe conferem a(s) singularidade(s).
Como as tuas, muitas outras memórias de muitas outras SFUAS poderíamos aqui confrontar. Afinal, tais casas, sempre que se fizeram tradição num dado lugar, são parcela incontornável para a compreensão do mesmo.
Aquele abraço, companheiro
Luís
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