quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O BARDO NA BRÊTEMA


Insegurança cultural

Por Rudesindo Soutelo(*)

Paradoxalmente não existe uma definição global e universal para o termo ‘globalização’. O que para uns tem a ver com questões meramente económicas, outros centram nos fluxos financeiros e ainda há os que se focam nos aspetos políticos e jurídicos. Daniele Conversi afirma que a globalização cultural é a forma mais visível e real de todas, já que progride na destruição global removendo todas as barreiras e proteções tradicionais[i]. Talvez pudéssemos definir a globalização com as palavras de Nietzsche quando, nas Considerações inatuais, descreve “um sistema de incultura ao qual se poderia conceder certa unidade estilística, enquanto ainda tem sentido falar em barbárie estilizada”[ii].
No Le Monde Diplomatique de agosto de 2011, Frédéric Lordon escreve: “No princípio as coisas eram simples: havia a razão e depois havia a doença mental. Os seres dotados de razão tinham estabelecido que a globalização era a realização da felicidade; todos os que não tinham o bom gosto de acreditar nela deviam ser internados”[iii]. Mas existe verdadeiramente a globalização, o que poderíamos chamar uma comunicação horizontal entre os países, sociedades, culturas ou grupos étnicos onde os contactos se produzem em condições de igualdade? Conversi afirma que o processo é mais bem piramidal, com um reduzido número de indivíduos na cúspide –praticamente todos usa-americanos– a definirem os modelos que logo se impõem ao resto da humanidade[iv]. Pirâmides que também existem nos países e sociedades para homogeneizar a sua fatia de soberania.
“A arte sem sonho, produzida para o povo, realiza aquele idealismo sonhador que parecia exagerado ao idealismo crítico”[v], proclamava Adorno em Indústria cultural e sociedade.
A ‘globalização feliz’ que a indústria de Hollywood espalhou após a Segunda Grande Guerra, é hoje a realidade cultural na que acredita um grande número de pessoas em todo o mundo, pois, a socialização das novas gerações foi ‘americanizada’, no sentido que Conversi lhe atribui ao termo como a forma mais superficial, incoerente, parcial e fraca, tal como uma imitação ou aparência de algo cujo valor nem sequer se entende ou como a difusão de aspetos banais e comerciais de produtos industriais americanos e de consumo maciço[vi]. Mas essa escolha não foi livre, antes foi a imposição de políticas culturais centralizadas baseadas no que Georg Soros denomina fundamentalismo do mercado, cujo paradigma dominante assentava na teoria de que os mercados financeiros tendem ao equilíbrio, até que a crise de 2008 demonstrou a falsidade dessa premissa[vii].
Curiosamente, a nação que mais promove o desregulamento dos mercados e beneficia da globalização cultural, Usamérica, é a que adota mais medidas protecionistas para evitar que as outras culturas entrem maciçamente no seu mercado interno.
A cultura é adquirida, não herdada, e segundo Geert Hofstede, é uma programação coletiva da mente que distingue os membros de um grupo ou categoria de pessoas face a outro[viii]. Hoje, a juventude de todo o mundo vê os mesmos filmes, ouve a mesma música, partilha a mesma rede social e, ainda, come e veste a mesma qualidade homogénea de lixo. As suas culturas originárias foram banidas do mercado e não existem laços de cooperação, o que os transforma em indivíduos aculturados no seu próprio grupo social. Este êxito da cultura invasora e homogeneizadora, que amplia assim o seu mercado, não está isento de conflitos porque, como nos lembra Lévi-Strauss, quanto mais homogénea se torna uma sociedade, mais visíveis serão as linhas internas de separação, mas também porque “o progresso só se verificou a partir das diferenças”[ix].
Quando se ameaça a cultura, o modo de vida e o sentido de continuidade dum grupo, percebe-se como um sentimento de insegurança cultural que pode gerar uma crescente mobilização coletiva, uma reivindicação de soberania ou um nacionalismo que responda a agressão[x]. A globalização foi o sonho totalitário do capitalismo ultraliberal, o fundamentalismo do mercado livre que trocou a luta de classes em divisão e antagonismo dos trabalhadores de países ricos e pobres por mor da deslocalização de empresas. Quanto à tecnologia, Adorno também foi esclarecedor: “A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação, é o caráter repressivo da sociedade que se autoaliena”[xi].
São cada dia mais as vozes que reclamam uma urgente desglobalização e desamericanização, para restaurar a soberania dos povos e promover o contacto, em pé de igualdade, entre países, sociedades, culturas, línguas e grupos étnicos numa verdadeira internacionalização da cultura; eliminando o sentimento de insegurança e construindo o que o filósofo Boaventura de Sousa Santos define como o “paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente”[xii].

(*) da Academia Galega da Língua Portuguesa.
Compositor e Mestre em Educação Artística.




[i]   Conversi, D. (January de 2004). Americanization and the planetary spread of ethnic conflict: The globalization trap. Obtido em 15 de Agosto de 2011, de Permanent forum on Cultural Pluralism: http://www.planetagora.org/english/theme4_suj2_note.html
[ii]   In Adorno, T. W. (2010). Indústria cultural e sociedade. (J. M. Almeida, Ed.) São Paulo: Paz e Terra, p. 19.
[iii] Lordon, F. (Agosto de 2011). A desglobalização e os seus inimigos. Le Monde diplomatique, pp. 2-3.
[iv]   Conversi, D., op. cit.
[v]   Adorno, T. W. (2010). Indústria cultural e sociedade. (J. M. Almeida, Ed.) São Paulo: Paz e Terra, p. 14.
[vi]   Conversi, D., op. cit.
[vii] Soros, G. (2008). Um novo paradigma para os mercados financeiros. (L. Boldrini, & P. Migliacci, Trads.) Agir Editora: Rio de Janeiro, p. 183.
[viii] Hofstede, G. (2003). Culturas e Organizações. Compreender a nossa programação mental. Lisboa: Sílabo, p. 19.
[ix]   Lévi-Strauss, C. (2010). Mito e significado. (A. Bessa, Trad.) Lisboa: Edições 70, pp. 31-32.
[x]   Conversi, D., op. cit.
[xi]   Adorno, T. W. (2010). Indústria cultural e sociedade. (J. M. Almeida, Ed.) São Paulo: Paz e Terra, p. 9.
[xii] Santos, B. d. (2002). A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência (4ª ed., Vol. 1). São Paulo: Cortez, p. 71.

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