terça-feira, 15 de novembro de 2011

INTIMIDADES


O ANIMATÓGRAFO

A terriola usufruiu de uma sala de cinema aproximadamente durante meio século e quando ela encerrou, por ordem da Direcção-Geral dos Espectáculos, no princípio da década de oitenta, dadas as condições de segurança do edifício porem em risco a integridade física dos eventuais utentes, uma vez o piso do balcão ameaçar abater a qualquer momento, só um bom par de anos mais tarde dei pela sua falta, concretamente, a partir da altura em que me começou a pesar, no tempo e nas energias, o facto de me ver forçado a recorrer aos ecrãs de vilas vizinhas para me divertir com certas películas que, em minha opinião, não requeriam nem mereciam uma ida propositada à capital. À medida que o pó e a sujidade foram dando sinais nas vitrinas e na fachada, em geral, fui tomando consciência que, afinal, até tinham sido muitas as terças-feiras com serões preenchidos por filmes de segunda e terceira linha, é certo, mas que nem por isso deixavam de proporcionar distracção e, em muitos casos, com o acréscimo de provocarem conversa. Tal como eram variadíssimos os grandes êxitos de bilheteira que ali houvera visto, aos fins-de-semana, sempre com a casa a deixar gente de fora. Fosse o que fosse, aquele cine-teatro era uma opção que se calou e agora parece-me que então não compreendia que, para tanto, mais não necessitava que andar uma vintena de passos.
Porque chegaram os interiores àquele estado? Ele é verdade que nos últimos anos, especialmente às terças e às quintas-feiras, as cadeiras estavam às moscas, a não ser num ou noutro caso de exemplares de um género em voga, eram vulgares as noites em que nem duas mãos cheias de pessoas se espalhavam na sala. Isto para nem lembrar aquelas consequências da nouvelle vague em que, pelo menos uma vez, eu e um outro amigo fomos os únicos presentes, a ponto de ele fumar no decurso da projecção sem que surgisse quem se importasse por isso. Em contrapartida, os Sábados e Domingos, incluindo a matiné, esses continuavam cheios. Havia povo para isso. E nesse aspecto, se algum problema se colocava, ele prendia-se mais com as escolhas apresentadas ao público do que a este propriamente dito. Aliás, tenho para mim que a actividade cinéfila, em si, era lucrativa. Mesmo descontando a selvajaria responsável pelos cortes e rombos nos estofos do balcão, em primeiro piso, no cômputo final o saldo era, certamente, positivo e, arrisco dizer, economicamente interessante.
A casa desabou devido a outros motivos, exteriores a ela. Foram as gestões ruinosas da Cooperativa Operária de Consumo que daquela era proprietária, a sucessão de anos ao sabor do vento foram os responsáveis pela incapacidade de manutenção verificada e, mais tarde, pela quase falência daquela associação, sonho de alguns operários dos tempos da primeira república. Foi por isso que não houve dinheiro para arranjar as instalações e ninguém se mostrou interessado em evitar o descalabro total. Mas sobre as razões de tais desnortes não me proponho falar aqui que essas acabam por ser motivos para outras guerras.
Para já, limito-me a acrescentar que o salão de cinema foi o capricho da última colectividade de cultura e recreio que se fundou no burgo, a partir de uma cisão da banda da mais anosa daquelas associações. Por algum tempo foi objecto de exploração privada, pelo Júlio do café que o trouxe de arrendado. Por fim, a Academia vendeu-o à Cooperativa e assim ficou até à hora da morte.
Ao longo do tempo houve um público cinéfilo. Um dos meus tios paternos, por exemplo, teve por muitos e bons anos um lugar reservado numa das últimas filas do balcão. Mas também se formaram homens que gostavam de se dar ares de rebeldia de um Humphrie Bogart ou do semblante melancólico e apaixonado de um Richard Burton. E eram muitos os que tratavam por tu os heróis da tela e sabiam de cor as películas em que entrara o Lex Barker ou o Gari Cooper. Várias foram as gerações que despontaram para a matiné de Domingo que era o dia da indumentária cuidada e até àqueles que têm a minha idade, muitos foram os que em comum cresceram com os moços que, nos intervalos, percorriam os corredores e os lugares com um tabuleiro ao peito, onde traziam os doces e os salgados, cujos papéis e cascas se estatelavam no soalho à laia de despojos da sessão. E se quiser ser justo, ali não vi apenas as diatribes dos bons e dos vilões dos western spagueti que até tiveram os seus heróis, como o Giulliano Gema que, no papel de Django, foi salvo por uma moeda de um dólar, e nem me estou a referir a espectáculos de ilusionismo e de música que ali tiveram lugar. O Sérgio Godinho, por lá iniciou a sua tournée sete anos de canções. Estou antes a rever a manifestação que o Tonho Testa e o Estreia barbeiro queriam fazer junto das bilheteiras para puderem assistir de pé a um filme considerado erótico, se não estou em erro, “A Piscina”. Ou as gargalhadas provocadas por algum aparte jocoso que, no escuro, por vezes se fazia ouvir a propósito de alguma cena.
Com efeito, para a rapaziada da minha convivência, o cinema era um ponto de diversão e de encontro e se na meninice os costumes e os zeladores tudo faziam para que fossemos contidos e discretos nas brincadeiras que por lá praticávamos, ao longo da adolescência as rédeas quebraram-se abrupta e inesperadamente e fora das jaulas podemos dar largas a pinotes que em outras circunstâncias não teríamos feito. Coisas de rapazes, resignavam-se então os mais velhos. Houve uma fase de entradas propositadamente tardias, para descermos as escadas da entrada com saltos em piso de madeira e também houve a moda de mastigar rebuçados de modo a que o barulho perturbasse alguns momentos de maior emoção e suspense.
Foi daí que derivou o prato predilecto das soirés de Sábado. Como éramos muitos, entre rapazes e raparigas, quase sempre conseguíamos preencher toda a fila A do balcão, a primeira de todas que, sob a protecção de um muro baixo se debruçava sobre a plateia, no piso inferior. Às páginas tantas, alguém teve a ideia do que apelidámos de “ovnis” e é claro que a coisa pegou logo. A brincadeira consistia em colocar um rebuçado no parapeito de madeira a que imediatamente chamámos pista de descolagem e com a força de quem dispara um bugalho, escolhido o momento apropriado que naturalmente seria aquele em que as pessoas estivessem mais concentradas nas peripécias que estavam a seguir, de preferência naquelas cenas em que o inesperado era o que se esperava, era então que algum de nós dizia “-Fogo!” e, em acto contínuo, voavam os projécteis na direcção de algum coro cabeludo que de imediato se virava para trás.
Era uma risada.

Alhos Vedros, 2 de Março de 1996

2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Acho que todos os que não nasceram nesta época em podemos ter tudo em casa ao alcance de um clique, têm o seu "cinema paraíso". Era praticamente a única porta aberta para os diversos mundos que nos fascinavam.

Curiosamente, no sábado passado fiz a apresentação do meu livro, na SFUA, a "Velhinha" de Pinhal Novo, o sítio em quue vi os primeiros filmes da minha vida. Foi lá que fiquei siderado com a beleza das mulheres, com o poder dos homens, com a beleza da dança, aterrorizado com vammpiros, angustiado com misérias e odiei e dei vivas à morte de ditadores...

A minha semana ficava suspensa até esse sábado em que sabia ir ver o John Wayne vencer os bandidos...

A facilidade que temos em ver qualquer filme em qualquer sítio está a retirar a magia ao cinema...

...e eu sinto a sua falta!

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

O cinema é um dos instrumentos da difusão cultural e um dos mecanismos de enculturação e por isso ser tão naturtal o tal "cinema paraíso" de que falas. Quando se diz que o século passado foi americano, é, em boa parte, a ele que isso se deve, pois ele trouxe esse outro lado da janela que referiste e com isso espalhou ideias, gostos, comportamentos, até por mundos fechados como era aquele em que decorreram essas memórias dos verdes anos. Foi também um verdadeiro rito de passagem na medida em que marcava a o crescimento com a possibilidade de nos irem sendo permitidas aventuras que às idades menores estavam vedadas e se essa carga se diluíu nas últimas décadas, mantém ainda esse poder de nos inserir no mundo, próximo e distante de que afinal acaba por ser uma espécie de espelho.

E até o fim desses cinemas locais, de colectividades ou de pequenos empresários que tanta vida davam às terras em que sempre adquiriam estatuto de ponto de referência e de encontro, até esse movimento reflecte as alterações nos processos de concentração/redistribuição da(s) riqueza(s) e do(s) poder(es) que tem caracterizado a révanche autocrática e anti-estado social que lamentavelmente vai vencendo neste mundo em que vivemos.

Diz-me como ias ao cinema e eu dir-te-ei a época a que te referes. Na nossa relação com ele vemos como foi acontecendo a transformação dos tempos e por isso sempre seria incontornável num romance como este.

Aquele abraço, companheiro
Luís