quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

d´Arte - Conversas na Galeria LXX


Poeira de Estrelas Autor António Tapadinhas
Acrílico sobre tela 60x50 cm

Mistura de cores estranhas para gerar um espaço de descoberta com novas luminosidades cromáticas, induzindo uma impressão de autêntica liberdade criativa.

A minha maior realização em 2011 foi o lançamento do meu livro, por isso, vou terminar o ano com um conto.
Entretanto, façam-me o favor de ser felizes!

HISTÓRIA DE UM PINTOR

Aquele sou eu, deitado naquela cama, na fria brancura hospitalar. Estava cheio de dores, com tubos de drenagem na barriga, com agulhas que me injectavam soro nas veias, o peito mordido por pontos que ajudavam a juntar o esterno serrado e agrafado. Não me doía menos a perna esquerda, também cosida, depois de tirada a veia grande safena, da qual, três segmentos foram ligados a outras tantas oclusões arteriais coronárias. Agora, não me apetece voltar: estou aqui tão bem, junto ao tecto, perto do relógio cujo tic-tac abafa todos os sons, apaga todas as dores.
Não posso ficar a olhar para mim, eternamente. Poderei seguir a vereda luminosa que tenho à minha frente? O brilho é tão intenso, que não deixa ver onde termina aquele caminho ladeado por árvores de luz, que estranhamente parecem projectar sombras para o tornar mais apetecível de percorrer. Será que este fio de luz que me liga ao meu corpo, pode esticar o suficiente para eu o percorrer por inteiro?
O caminho faz-se, caminhando.
Curioso: o fim parece estar sempre à mesma distância, mas já não consigo ver o meu corpo. Será que ainda posso voltar? Tanta luz, tanta cor... Será que ainda quero voltar?
Começo a ouvir vozes. Melhor: sons que saem daqueles corpos de luz, envoltos por finas películas, como enormes bolas de sabão, com todas as cores do arco-íris e de outras que vejo pela primeira vez.
Estão a falar todos ao mesmo tempo. Sinto os sons na minha cabeça, só que não percebo o que dizem, como numa feira, com todos os amplificadores no máximo, mas mal sintonizados.
À medida que avanço, começo a entender alguns dos pensamentos sonoros, que as figuras trocam entre si. A cada momento, esta capacidade aumenta. Cada átomo do que sou deixa-se envolver pela carícia das mensagens trocadas.
Já não há árvores nem sombras, assim, sem transição. Estou numa clareira, imensa como um oceano de luz, num céu em que flutuam incontáveis películas que, ao aproximarem-se umas das outras soltam sons melodiosos e suaves que parecem comandar os tons luminosos das esferas, num concerto intraduzível, mas coerente, de luz e sons.
Dou por mim a movimentar-me ao compasso daquela música e, não sei como, os meus movimentos vão deixando no espaço réstias de luz que vão construindo o meu casulo.
Um som mais insistente sobrepõe-se a todos:
- Que fazes? Não podes ficar aqui!
Um casulo destaca-se dos outros. Parece formado por pétalas de girassol. Lá dentro distingo alguém com luminosos olhos verdes, com barba e cabelos ruivos, encimados por um chapéu de palha que lhe rodeia a cabeça como um halo. Um contraste de cores complementares, que me permite, sem esforço, identificar o meu interlocutor.
- Vai-te embora! Eu fico à tua espera na casa amarela.
E eu vi a casa! O pequeno terraço, o candeeiro, as mesas e as cadeiras, o toldo amarelo. De repente, a luz que penetrava tudo começou a desaparecer num turbilhão, como sugada por um vento cósmico gerado pelos ciprestes a roçar as estrelas desse céu exaltado e fantástico.
- Volto, quando? – pensava.
- Logo que estejas pronto, saberás.
Tal como a luz desaparecia, também o fio que me prendia ao meu corpo, parecia perder luminosidade.
Momentos antes, estava no paraíso; agora sentia uma urgência desesperada de regresso.
E regressei: rápido como a luz... para a luz, para a vida.
Fiquei com uma certeza: não posso desperdiçar um minuto. Não por mim – tenho a minha cadeira reservada no terraço da “Casa Amarela” – mas por algo que ainda tenho para fazer. Quando chegar o momento, saberei... e espero não falhar.
Há coisas que é melhor não sabermos – ou não as contar a ninguém!

ANTÓNIO TAPADINHAS

4 comentários:

Luís F. de A. Gomes disse...

Muitíssimo bom, este conto, em que o Mestre -sempre ele(s)- não salva mas indica ao discípulo o caminho que, por esse enquanto, ainda era o da vida, aqui, no lado de cá onde há árvores e sombras. Bela antevisão da antecâmara da morte, mais cinéfila que filosófica mas, justamente por isso, sem aqueles rodriguinhos desnecessários que, mesmo envoltos nas profundezas latinas, tantas e tantas vezes apenas querem dizer nada.

Mas é curioso como as coisas são.
Creio que esta tua pintura é bastante prejudicada pela redução que a sua publicação neste espaço implica.
O título que lhe dás faz sentido pela luz que conferiste ao quadro e, nesse âmbito, aí está uma pintura que nos convida a pensar, no limite, no sentido da Vida, na nossa comunhão cósmica com este Universo em que surgimos.
Neste último fim-de-semana comecei a ler um estudo bastante interessante de Abram David, “A Magia do Sensível” que faz a apologia da Humanidade primitiva, na medida em que a mesma se integrou no planeta vendo-se a si mesma como elemento do mesmo, com isso revelando a sabedoria –que deveríamos recuperar, será, certamente, essa a sequência lógica da argumentação que tenho vindo a acompanhar- de conseguir integrar-se nos ciclos naturais da Mãe Terra, não como alguém exterior que os respeita, antes como partículas dos mesmos a que obedecem. Uma leitura estimulante, pelo menos na minha opinião, como é bom de ver.
Causalmente, ontem à noite fui ver o último filme do Lars Von Trier, “Melancolia” –que vivamente recomendo- que contem uma parábola incrível sobre esse tal sentido da Vida e que aqui me inibo de clarifica, não vá estragar uma possível leitura se for o caso de vires a vê-lo.
Ora não sei se por essa dupla influência, afinal, em qualquer dos casos, significativamente fresca, mal olhei este teu trabalho, dei por mim a pensar no homem primitivo, pois me pareceu ver, nesse aparente caos de mesclas de cor, os ténues contornos de um rosto que nos poderia remeter para a profundidade da nossa existência, enquanto espécie e, por isso, podermos partir para uma reflexão justamente sobre este nosso mistério de estarmos aqui.
E é aí que está a graça da curiosidade, uma vez que o lhe título que deste e as palavras que lhe acrescentas, através de outros pressupostos, acabam por derivar –ou permitir que daí se derive, se quisermos- na interpretação que, por engano, a minha primeira impressão me tinha transmitido.

Aquele abraço, companheiro
Luís

luis santos disse...

Creio que vi há uns meses atrás uma Casa Amarela parecida com esta, pintada por um amigo Francisco de Amorim, do Rio de Janeiro, representando uma casa que ele conhecia em Luanda do tempo em que lá vivia...

Quanto ao conto, a poeira de estrelas, a Luz das estrelas e o Matisse, resumo numa palavra: divinal.

E a alegria que me deu a sábia resposta do Matisse...

Muito feliz por partilharmos o Estudo. Mais Aquele Abraço, para sempre...

A.Tapadinhas disse...

Tenho para mim, que nos momentos mais graves ou mais decisivos da nossa vida, somos ajudados a tomar o caminho mais acertado. Por quem? Pelo quê? No córtex cerebral devem lá estar todas as informações - difícil é retirar o que interessa com tanto ruido à sua volta...

Estou convencido (não sei se um cientista concordará comigo) que o córtex dos cérebros dos homens primitivos era no fundamental igual ao nosso e, por isso, estou perfeitamente de acordo com o estudo que citas - somos feitos do mesmo material com que se fazem as estrelas.

Os ténues contornos de um rosto que tu vês...

Não te envergonhes de vê-lo, porque ele está lá! Como está lá o tronco da deusa, os seus seios de onde saem as luzes da vida...

Vou tentar arranjar tempo para "Melancolia"...

...porque agora estou satisfeito por acabar o ano com uma "Conversa na Galeria" tão estimulante!

Abraço,
António

A.Tapadinhas disse...

Luis Santos: Vou morar, quando chegar o dia, numa casa amarela, cheia de luz, com aromas de âmbar e mel, com um terraço com muitas cadeiras para receber os amigos.

A minha cadeira é feita de nogueira e tem o assento de palha, conforme o desenho feito pelo Mestre...

Se tiver sorte até vou ver um "Céu Estrelado"...

Ficas convidado!

Abraço,
António