Ontem esqueci-me de referir um ponto importante desta minha passagem pela experiência de uma história de espiões e conspiradores. De certa maneira é melhor assim, tratar em separado um aspecto que afinal ofuscaria a alegria sentida pelo ter que reviver emoções e momentos que me fizeram feliz e com os quais muito aprendi e cresci. Sem o menor sintoma de narcisismo e sem a mínima vaidade que seria feia e retiraria às minhas palavras qualquer sentido de sentimento e sinceridade, posso mesmo escrever ter sido esta uma daquelas aventuras que, por aquilo que em elas adquirimos, concorrem para que sejamos umas pessoas melhores e foi precisamente isso que sucedeu comigo. Não sei se não será uma frase feita dizer que é nas situações mais difíceis que as pessoas se revelam mas, ainda que o não pensasse, seria certamente essa uma observação que teria que acompanhar a revisão daqueles factos, quer dizer, de toda aquela sucessão de peripécias verificaríamos, de tão evidente que o carácter de cada um dos envolvidos, quer directa quer indirectamente, não só foi posto à prova como acabou por se definir em face daquilo que as circunstâncias levaram cada pessoa a enfrentar. E é sempre triste concluir que não podemos estar confiantes que aqueles que estão ao nosso lado se dispõem a estender-nos a mão quando disso precisamos. Depende do que está em jogo, daquilo que cada um entende ter a perder ou a ganhar e do resultado que encontra para essa equação. É natural que assim seja, é o que me parece e não estou certa que possamos estabelecer algum julgamento moral a esse respeito. Antes de mais, somos apenas animais, como os outros e nessa medida, como todos, o primeiro problema que se nos coloca é o da própria sobrevivência. É precisamente aí que entram os valores que nos podem encaminhar para um dos lados desse ténue meridiano que separa a animalidade da humanidade ou seja, a barbaria da civilidade e é nisso que o carácter de cada um importa, pois, em boa parte, dele dependem as escolhas àquele nível. A generosidade e a coragem quando sinceras e não meros balões de palavras, sobrepõem-se ao medo e permitem que entre a solidariedade e o egoísmo, a opção recaia na primeira. Há sempre temores, desde logo na perspectiva do sofrimento físico ou psicológico e até moral, mas também na da perda do conforto material com que nos sentimos satisfeitos, mas são os traços daquilo que verdadeiramente somos que acabam por determinar os pressupostos das nossas condutas e se é a inteligência a ferramenta que usamos para sermos capazes de ultrapassar os medos, são os valores que elegemos que nos levam a tentar fazer uso daquela tendo em vista a finalidade de que falámos. Sendo normal e agora o vejo, esperável, não deixa por isso de me entristecer a verificação de tanta mesquinhez naqueles que nos rodeiam. E foi tão agradável o reviver daqueles dias que teria sido de todo lamentável se o estragasse com este outro lado menos abonatório daquela memória. A verdade é que nem todos bateram palmas ao modo recto e sem subserviências com que enfrentámos a polícia política e as vicissitudes por que esta e a guarda nos fizeram passar, indo ao pormenor humilhante de obrigar mães com bebés ao colo a ficarem na praça, sob o olhar atento e ávido dos fuzis, enquanto aquela canalha não desse por concluído o rasto abjecto das casas rebuscadas em nome de deveres anti-subversivos. Caramba, eu já nem lhes pediria que fossem capazes de assimilar a pertinência do que o José Pedro quis dizer quando afirmou que há momentos em que um homem tem que tomar uma posição. Será que as pessoas podem ser assim tão cegas? Será que não vêem que este regime atingiu um estado de demência tal que vê uma conspiração comunista em tudo? Então não temos conhecimento que as forças da ordem andam por aí, por esses campos, prontos a partirem os dentes a quem se limite a pedir mais dois tostões pela jornada por um simples naco de pão? Será que esta gente é toda ela comunista? Só se o pedir um pouco mais para os filhos ou até se o quase anódino clamar por um pouco mais de justiça for o suficiente para o ser. Será que algumas destas almas não compreendem que a pobreza, a miséria, melhor dizendo, é tanta que as pessoas nada mais querem que o comer um pouco melhor? Não será criminoso que se atirem as coronhas e os bastões, quando não as balas da polícia, sobre trabalhadores que fazem uma greve para que as respectivas barrigas e as dos seus tenham um pouco mais de respeito? Como pode o regime falar em nome dos portugueses se os mantém acorrentados aos ditames e ganâncias dos mais fortes e os priva da liberdade através de uma violência demente e gratuita que nem ao paizinho deixou de fora, incomodando-o por prestar cuidados médicos a quem eles tomam por maus e pouco ou nada recomendáveis, justamente aquilo que ele jurou como compromisso deontológico nunca dever deixar de fazer? Como é que pode haver quem perante tudo isto tenha apontado o senhor Abel como causador do mau bocado por que passámos? Infelizmente foi mesmo isso que aconteceu nos dias que se seguiram à nossa vitória secreta e de que nenhum deles chegou, mesmo que remotamente, a saber. Não tendo gostado do incómodo e, lá está, deixando que os pequenos egoísmos abafassem qualquer manifestação de generosidade de que, no caso, nem teria sido assim tão difícil arranjar as aparências de um disfarce, houve quem reagisse à presença abusiva e repressora da polícia com o propósito imediato da distribuição da culpa para a qual, o senhor Abel, em tal entendimento, teria o perfil ideal, assentando-lhe assim aquela que nem uma luva. Pessoalmente gosto muito dele, acho-o um ser humano extraordinário, um homem bem disposto e, apesar do que já percorreu de espinhos e facadas ao longo da vida, sem rancores, uma pessoa cheia de energia e sempre pronta a dar uma mãozinha ao próximo, alguém a quem as refregas podem deitar abaixo mas que se levanta uma e outra vez, aquelas que tiverem que ser, um exemplo de pai e marido e como se isso não fosse o bastante, inteligente, arguto e de mente aberta e eivada de curiosidade que o faz por interessar-se e empenhar-se em aprender aquilo que não teve oportunidade para aprender nos bancos da escola, contudo nem chega a ser isso que está em causa. Isso é o que o José Pedro resumiu em face desse diz que disse, ao sustentar ser aquela acusação uma vergonha que ele se recusava a perfilar. Pois tem ele toda a razão, é uma vergonha que a mim entristece e nem é pelo indivíduo em si a quem o dedo se aponta, antes pelo próprio esticar do indicador e o que ele revela de carácter que, na solidariedade nada mais vê que um vão vocábulo. É nesta mesquinhice que as tiranias se sustentam. Vale que o senhor Abel, se disso soube, não guarda ressentimentos a quem quer que seja.
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