terça-feira, 9 de outubro de 2012

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Bem, creio poder afirmar que passei pela minha história de aventura com passagens pela experiência da clandestinidade e da luta subversiva. Mais que um caso policial, quase me pareceu um enredo de espionagem e, no balanço final, não será imodéstia admitir que tenho razões para estar satisfeita com o meu comportamento, pois em momento algum vacilei perante os perigos e naturalmente no meio das peripécias em que, sempre por força das circunstâncias e nunca por molas decorrentes da minha vontade, me vi envolvida. Curiosamente tenho para mim que cresci com isto. Aprendi a conhecer-me melhor e fiquei a saber que sou capaz de manter o sangue frio e a presença de espírito em situações que põem em risco não só a nossa segurança como, no fundo, podem arrastar para uma exposição às maiores sevícias físicas e até ao mais prosaico ponto final nesta maravilhosa delícia que é o facto de estarmos vivos. Pudera, enfrentar a polícia política, com os seus esbirros cheios de vontade de ver sangue e completamente determinados a desmantelarem uma acção conspirativa, cheios de técnicas e artimanhas para o prosseguirem e com as armas e a violência sem freio suportadas na lei e protegidas pelo restante aparelho do estado, moralmente despidos do respeito que a vida humana deve gozar e eticamente enformados na ideia do cumprimento do dever na sua missão de defenderem o que eles consideram ser os interesses da nação e que para mim não passam daqueles que fundamentam a lógica de um regime que se arroga de falar em nome dos portugueses ao mesmo tempo que os priva da liberdade de se defenderem da ganância e das prepotências mais abjectas e com isso os atira para o limbo da miséria em que a maioria deles permanece. Dar de caras com a agressividade em desenlace eminente, quando menos se espera e sofrer de imediato a ameaça que sabemos não ser vã de que algo horrível nos vai acontecer, é daqueles acontecimentos que nos fazem sentir um arrepio que mais se assemelha a um choque eléctrico, seguido de um estranho rebuliço na barriga que desce, num ápice, até às extremidades da anca e nos deixa com a fraqueza nas pernas de quem sustem as necessidade mictóricas, na proporção inversa da sensação de secura que se instala na garganta. Ver um bando de meliantes de pistola em punho entrarem pela casa de empurrão, ainda os galos fazem horas e as estrelas deixam a superfície à mercê das sombras, batendo antes de perguntar e rebuscando os cantos e os recantos mais esconsos em busca do que não encontram por lá não estar e depois suspendermo-nos na incerteza que uma retirada tão repentina e inesperada como a invasão deixa no espírito. Ou ver um ror de homens fardados apearem-se de dois camiões para cercarem a aldeia munidos de espingardas prontas a disparar e os da secreta aos gritos e com maus modos e aos encontrões, insistindo em reunir quem estivesse no largo, sempre na condição indefesa de quem não tem como escapar ao mal que lhe queiram impor. Se alguém me tivesse dito que eu seria capaz de ter a resposta e a serenidade apropriada para não só reagir até com certa delicadeza às manifestações da barbaridade, como ainda para chamar a atenção para a falta de sentido do injustificado e a necessidade de mantermos o bom senso, se alguém me dissesse que eu seria capaz de mentir e ocultar informações sem deixar transparecer o mais leve sinal de o estar a fazer e muito menos se alguém me dissesse que eu conseguiria tudo isso e simultaneamente acalmar os outros e levá-los a controlarem receios e estados de pânico e a adequarem as atitudes, para ser sincera, antes de tudo o que se passou, jamais o teria acreditado. Os meus pais educaram-me para saber tratar de mim e ganhar o meu próprio sustento para não ser um fardo para ninguém. O paizinho, especialmente, sempre me incentivou a enfrentar os obstáculos com tranquilidade e a mente aberta para encontrar as melhores soluções para cada problema. São mesmo uma memória de infância os passeios que dava com ele pelos campos circunvizinhos à quinta dos avós, naqueles dias que ele ali passava connosco e que nuns anos coincidiam com o levar-me e noutros com o trazer-me e que sempre englobavam uma escalada até ao cume da serra, em que ele me fazia defrontar com passagens sobre e através de rochedos que só vergava pela força do ânimo. Daí até às qualidades de uma militante em plena luta subversiva que acabei por sentir em mim… Não sei, por muito que procure, não sou capaz de imaginar onde fui buscar um tal desembaraço. Mas a miséria que nos rodeia é tanta, o sofrimento que os testemunhos do Félix e do Artur nos trazem é tanto por essas casas e casebres fora, apinhadas de crianças que não chegam a ter a idade do sonho por passarem directamente para o esforço das tarefas sequer passando pelos bancos de escola, deve ser tão triste e desesperante ver os filhos descalços sem possibilidade de aconchegarem o estômago com algo mais que as sopas de caldo e batatas e um simples naco de pão. Provavelmente foi isso que me fez forte na convicção de não estar a fazer algo de errado e consequentemente me transmitiu a força de vontade necessária para enfrentar a borrasca com os olhos bem abertos e, apesar do medo que sempre me acompanhou, tenho de o confessar, com um mínimo de lucidez. Mas tenho quase a certeza que foi essa a razão por que o José Pedro, na minha cozinha e em voz de segredo, disse para o Manuel e para mim e para o Félix e a Éster que também estavam presentes que há momentos em que um homem tem que tomar uma posição e foi desse modo que ele ali justificou a concordância em prestar todo o auxílio possível ao senhor Abel, a quem, pela calada de um amontoado de silvas e choupos em torno de um charco, nada mais nada menos que um destacado dirigente comunista pediu socorro para si e o responsável pela greve numa importante fábrica da Covilhã, a fim de se esconderem até que a rede os pudesse conduzir para lá da fronteira até à União Soviética onde hão-de ficar a salvo. A única reserva é que seria de todo inconveniente se os outros soubessem ou viessem a saber da conjura, até pela ausência de garantia quanto à concordância de alguns em face daquilo que eles se propunham fazer. Essa preocupação em todos se revelou e sobretudo na Teresa, desde a primeira hora, pois foi debaixo do seu tecto que o mais velho de todos nós se abriu e foi dela que partiu a ideia de usarem as grutas de uns penhascos na ponta a Norte da propriedade que, numas boas mãos cheias de hectares, permanece selvagem há muitas gerações. Se fizessem a coisa sem deixar rasto, dificilmente ali apareceria alguém à procura dos fugitivos e com um pouco de imaginação e um trabalho bem organizado, seria possível manter aquelas pessoas pelo tempo que fosse preciso até que as coisas amainassem e elas, muito embora furtivamente, encontrassem as condições para partir rumo à tão desejada liberdade. E pelo que ela conhecia daquela área, seria fácil montar uma panóplia de atalaias e mecanismos de aviso para que, no caso de os maus por ali quererem avançar com cães e metralha, os dois tivessem tempo de saírem dali e de se acoitarem na ravina traseira a que só pelo interior da terra tinham acesso e cuja passagem só por mero acaso os perseguidores conseguiriam encontrar e mesmo assim só depois de perceberem o que a mesma poderia significar o que, com todo o respeito, seria muito pouco provável se todos os cuidados tivessem sido seguidos na eliminação dos vestígios das presenças e na ocultação daquela entrada. Mas faltava a organização, o plano bem urdido e executado e para isso careciam de operacionais que os dois, ou os três se contassem com ela, não teriam como levarem a conspiração a bom porto. Qualquer um deles estava perfeitamente consciente que não eram só as suas próprias vidas que, em última instância, estavam em jogo. A comunidade, como um todo, poderia muito bem vir a ser afectada de morte se algo corresse mal e ao mesmo tempo estavam bem certos da discordância de alguns dos que nos acompanham nesta nossa experiência. O Manuel ficou todo satisfeito pelo sinal de confiança que foi o terem-se lembrado de nós para ajudarmos neste episódio de revolucionários e espiões. Mas tenho muitas dúvidas que isso tivesse o menor peso na sua concordância e empenho sem a menor das hesitações. Foi assim que entre nós, ainda com a conivência do Gustavo e da Viviana que a todos cobriram os álibis, perante os outros ou quem quer que fosse e a colaboração, como disse do Félix e da Éster, foi dessa forma que vigiámos caminhos e colinas e despistámos rastos e provas para que, uma vez a cada três dias, os foragidos pudessem pôr o dente em comida fresca e ficassem abastecidos com o suficiente para as restantes jornadas de isolamento e isto de tal maneira que nem a menor migalha ficasse sobre o chão onde se haviam escondido. Todos os envolvidos estão certos que a polícia apareceu por aí não porque desconfiasse com fundadas suspeitas de alguma coisa, mas apenas por saberem do passado do senhor Abel, ao que naturalmente se juntam os ditos e os mexericos que na Vila, de quando em quando, ainda constam a nosso respeito. E eu vi pela primeira vez alguém a quem chamam de perigoso comunista que, pelo cabelo desgrenhado e a barba por fazer e mal tratada, tenho até certa vergonha em o admitir, mais me pareceu um Zé do Telhado do que alguém determinado em transformar o mundo na maior justiça do socialismo. Agora que já lá vão um bom par de meses sem que hajam notícias de prisões, podemos começar a serenar e a acreditar que tudo passou, nós cumprimos com os imperativos das nossas consciências e este nosso pequeno paraíso ficou a salvo. Nestes tempos de guerra que teima em não querer acabar, é a alegria de uma pequena vitória sobre a tirania.

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