terça-feira, 30 de outubro de 2012

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



“-Claro que temos de fazer algo diferente. Nem faria sentido que fosse de outro jeito.”
Foram estas as palavras do José Pedro que tive o cuidado de anotar para que a memória não me levasse a operar com o cinzel da recomposição como habitualmente o faz pois, apesar da singeleza que lhes reconheço, tomei-as por tão bonitas e sinceras que não me quis furtar ao ipsis verbis de as registar tal e qual, através da boca, lhe saíram da alma. E eu concordo com ele, pesem embora as dúvidas de uns e até a oposição exposta por outros, também eu acho que esta aventura em que nos lançamos acabou por ganhar toda a razão de ser desde que não se restrinja aos benefícios materiais e imediatos que eventualmente dela venhamos a extrair, como já o estamos a fazer, é bom que se diga. E se avaliando pela amostra destes primeiros anos podemos estar confiantes de que serão certos e fartos. Seja como for, é como o José Pedro afirmou, é claro que não podemos deixar de querer algo mais que a repetição do que, de uma maneira ou de outra, já por outrem foi alcançado. E devo registar que há motivos para lá da generosidade que a atitude encerra. É óbvio que a partilha dá corpo a um espírito solidário, manifestamente imprescindível num mundo socialmente justo. Estou mesmo convencida que não só este seria de todo improvável, para não escrever impossível, sem aquele valor e atitude harmónica, como esta será inclusivamente o primeiro e primordial alicerce que aquele encontra para se sustentar. A partilha do que se tem e do que se sabe, não para que todos disponham exactamente do mesmo o que certamente contrariaria as recompensas da individualidade e muito menos para que todos sejam igualmente capazes e sapientes o que, por sua vez, iria ao arrepio da nossa própria natureza que a uns confere mais força e mais génio que a outros, antes para que, por ora em termos ideais, como é simples de entender, ninguém se veja amarrado na falta dos meios próprios a uma vida digna na busca da sua própria felicidade. Daí que ela seja uma escolha voluntária e consciente que não resulta pela imposição e por isso se faz valor e poderoso, sem o qual dificilmente será concebível a hipótese de uma sociedade justa, o mesmo é dizer, onde qualquer pessoa vê garantido o direito de dispor ou aceder aos mecanismos e oportunidades para escolher e construir o seu próprio caminho. Isto para mim é de uma clareza que não direi indiscutível mas que me atrevo a classificar de axiomática pois, mesmo tendo em conta os estudos que posterior e compreensivelmente me capacitaram a melhor precisar e arrumar as ideias, foi algo que adquiri por via da educação que recebi em casa, com os meus queridos pais. Em conformidade, daqui brotou o encanto que a expressão do José Pedro me incutiu e que eu quis aqui deixar lavrado no original. Seria um testemunho de prepotência totalmente inaceitável se alguém pretendesse que todos deveriam conseguir entender o problema sob este prisma; como referi, a solidariedade só é um valor enquanto parta do peito de cada um e assim considero absolutamente natural que muitos sejam aqueles para quem a vida, por mais longa, se possa desenrolar sem o menor gesto solidário. Penso até que outra coisa não seria de esperar, sequer sou capaz de dizer que haja aí algo de mal. Mas espanta-me como muitas dessas mentes utilitárias não alcançam os motivos pura e simplesmente egoístas que podem estar por trás da preferência por uma vida socialmente mais justa. A segurança, por mais evidente, será o primeiro de todos. Não é que se possa sustentar que existe uma relação causal entre a pobreza e a miséria e o crime, mormente o físico ou ao nível do roubo, pois nem todos os homicidas o são no contexto de causas tais e muito menos os ladrões e vigaristas se formam pelo simples facto de serem pobres, como o caso do engenhoso Alves dos Reis bem serve para o provar. Contudo, por muito rico que seja o palácio, nunca ele estará garantidamente a salvo da raiva e da fúria quando a turba miserável aumenta desmesuradamente. Compreendê-lo, quanto a mim, creio que se trata de um mero acto de inteligência e já me desconcerta que sejam tão poucos os que aí conseguem chegar. Com certezas ninguém pode dizer o que se passa na cabeça dos outros, por conseguinte também eu não poderei afiançar que as palavras do Zé estejam para lá dessa perspectiva interesseira que acabei de expor. Honestamente, acredito que sim e não sendo esse o caso, então devo dizer que eu, de livre vontade, prefiro a versão mais nobre. Quis o acaso que, em casa do Gustavo, o senhor Abel se deparasse com um exemplar de “O Lobo do Mar”, de Jack London que teve curiosidade em ler. A impressão que lhe causou é que não terá sido das melhores, uma vez que mais tarde se queixou da impotência que sentiu perante aquelas vidas e a filosofia de um capitão que lhe abalou convicções sem que ele tenha sido capaz de desenvolver ideias suficientemente fortes para as rebater, mesmo apesar de concordar que o Autor mais não logrou que um retrato pungente da natureza humana e num estilo sólido e com uma beleza ímpar. Mas a verdade é que o Homem não é apenas aquele lobo que se preda no semelhante e, no entender daquele companheiro, o que acima de tudo importa é que sempre tenhamos presente o que possa concorrer para que sejamos algo mais que um animal selvagem como os outros. Essa foi a conversa de um jantar, aqui em casa, e não me admirei quando ele pediu aos presentes que incluíam o Gustavo e a Viviana e ainda o Félix e a Éster, para além de mim e do Manuel, para que considerássemos seriamente a possibilidade de lhe ministrarmos lições em domínios tão distintos e variados como a Física e a Filosofia, sem esquecer a História e a Literatura. Propôs mesmo a ideia de um pequeno círculo de leitura que já estamos a pôr em prática, no qual se trocarão impressões e opiniões sobre determinada obra que a todos seja possível ler. Para ele será uma forma de poder testar aquilo que for aprendendo e, logicamente, de, no imediato, avolumar os seus conhecimentos. No entanto, o mais relevante naquele serão, foi o pedido humilde de um adulto interessado e empenhado em aprender. Talvez por isso tenha havido o eco entre os outros que, da indiferença à oposição, por não termos tempo para estas coisas, em alguns induziu o mais cruel desdém. Mas também houve quem apoiasse e logo se manifestasse disponível para a inerente acção de auxílio e ainda houve aqueles que se entusiasmaram. Entre estes o Quico que acrescentou que poderíamos muito bem estender essa espécie de escola popular (sic) aos trabalhadores rurais que temos vindo a contratar e que, tudo o indica, na larga maioria sequer chegam a saber ler e escrever. Pois foi daí que nasceu a iniciativa de fazermos uma campanha de alfabetização para todos aqueles que pretendam sair dessa negra impossibilidade de decifrar a mais pequena e insignificante das frases escritas. Temos espaço mais que suficiente no casarão para aí instalarmos uma pequena sala de aula, se bem que os trabalhos de adaptação estejam a cargo apenas daqueles que pretendem colaborar no projecto. Na troca de ideias em que decidimos avançar, preponderou o pensamento que sublinha a importância do saber na autonomia de cada um e até para melhorias no plano laboral propriamente dito e foi aí que a concordância do José Pedro teve aquela forma bonita de se expressar.

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