terça-feira, 16 de julho de 2013

A COMUNIDADE DO VALE DA ESPERANÇA - UMA CRÓNICA



Finalmente, em Outubro, poderei regressar a tempo inteiro e a cem por cento àquilo que verdadeiramente gosto que é o contacto diário com as turmas, o sentir-lhes o pulsar das conversas que aí se estabelecem e, precisamente nesse palco, vê-las crescer à medida que os pontos de vista e as leituras se robustecem pelo avolumar dos conhecimentos de cada um e o gozo dos desafios que por causa disso me colocam, levando-me a pensar e não poucas vezes a procurar novas e melhores respostas para os problemas que, depois de aprofundamento, acabam por se confundir com aqueles que a vida nos leva a enfrentar. Mal vejo a hora desse reatamento, sobretudo depois de, neste últimos seis meses, com todos os afazeres e outras exigências que a elaboração da tese implicou, ter sido completamente impossível manter as poucas lições que ainda assegurei nos primeiros tempos do doutoramento e de que tive que abdicar para me concentrar unicamente na conclusão daquela graduação académica. Mas agora que tudo está terminado e logo com a elevada distinção de um muito bom e a pouco vulgar classificação de dezanove valores que, sem vaidade alguma, devo dizer, tenho que admitir me deixa plena de orgulho, poderei então retomar, em ritmo normal, o trabalho directo e diário com os alunos, por enquanto na nossa escola, havendo no entanto a perspectiva de após a publicação em livro das ideias que defendi, vir a acumular com o conteúdo de uma cadeira, no âmbito da pedagogia, para o curso do magistério dos futuros professores primários.
 Nestes anos pouca coisa se modificou neste país de vistas curtas e cada vez mais isolado internacionalmente, ao ponto de nem mesmo os nossos aliados na OTAN deixarem de contemporizar com os movimentos que se opõem à nossa presença em África e de alguns parceiros, inclusive da EFTA, como se atesta por uma simples visita ao museu militar, em Lisboa, serem fornecedores de armas e munições para os rebeldes. É verdade que o nível de vida tem melhorado e as actividades económicas crescido, especialmente ao nível da indústria o que, cumulativamente aos expressivos números da corrente emigratória que se tem feito sentir, reduziu o desemprego praticamente a zero. Actualmente é fácil arranjar trabalho em Portugal e apesar da redistribuição da riqueza gerada estar muito longe de um número aceitável, os salários lá vão melhorando. Se há dez anos atrás foi uma novidade aqui na zona o facto de os nossos trabalhadores começarem a gozar férias pagas e fora de casa, começou a ser vulgar a presença de operários e pequenos funcionários nas estâncias balneares, também eles usufruindo desse benefício mais que merecido de puderem recuperar sem preocupação de um ano de esforço laboral mais ou menos intenso.
Deve ser o fermento que a PIDE aproveita para aumentar as dificuldades da oposição com uma brutal intensificação da repressão a um patamar que me leva a pensar ser de todo impossível o derrube do regime por via de um qualquer levantamento por parte da população. Não sei se por medo se por indiferença, provavelmente pela mistura de ambos os factores, o certo é que tenho a percepção de que alastra a resignação perante a continuidade da situação. E as esperanças que possam ter havido em torno de Marcelo Caetano, há muito se esboroaram sob o efeito da eficácia policial.
Nesta dimensão, tenho de reconhecer que me enganei redondamente quando pensei que a guerra, por ventura, viria a apressar a queda da ditadura.
Na nossa comunidade assiste-se ao espectáculo maravilhoso da afirmação da nova geração. É claro que o centro das decisões mais importantes permanece no núcleo daqueles que a fundaram e mesmo assuntos correntes que vão sendo resolvidos pelas responsabilidades delegadas, caso andassem ao arrepio da concordância por parte da maioria daquelas pessoas, seguramente seriam objecto de reavaliação e naturalmente postos de parte. Seja como for, são já os filhos dos que aqui chegaram –que não os nossos que aqui não vivem connosco, nem eu espero que tal possa vir a acontecer- quem está a tomar conta do dia a dia das unidades produtivas e, diga-se com justiça, quem tem conseguido expandir e diversificar os negócios.
Tenho pena que nem o João nem o Carlos façam parte desta aventura e não é pelo facto de, por isso, não os ter junto de nós o que, no caso do mais velho, até é atenuado pelas visitas com que regularmente nos conforta e as estadias que a Maria do Rosário, a nossa nora, aqui tem feito com o netinho que aqui aprendeu a andar e que se chama Manuel, como o avô paterno. Tenho pena de eles terem deixado de fazer parte de uma epopeia que realizou o sonho de um punhado de jovens. Contudo, sei não ter o direito, nem isso algum dia me terá passado pela cabeça e tenho a certeza que ao Manuel também, sequer de pretender que algum deles seguisse um determinado rumo na vida de acordo com os meus gostos e muito menos da veleidade de querer impor uma dada escolha, qualquer que fosse e desse modo aceito as decisões que tomaram e, por muito que me custe, esta separação que implicaram.
O Carlos Manuel vive agora em Paris, onde é bolseiro na Sorbone para concluir estudos de sociologia em que, até ao momento, tem obtido notas brilhantes. Para além disso, ganha a vida com traduções e os rendimentos de um pequeno negócio de edições com que a companheira, como eles dizem, explora o universo da literatura portuguesa que ali vai publicando e divulgando. Vivem num pequeno rés-do-chão de um prédio antigo, em Montparnasse e a Nicole espera o segundo filho que vamos a ver se formará o casalinho com o irmão que acaba de completar dois aninhos de idade e que, segundo as cartas carinhosas que ambos assinam, vai aprender a expressar-se tanto em francês como em português.
 Se tudo correr bem, no próximo ano, nas férias, haveremos de visitá-los.
 O João completou medicina e está agora a fazer a especialização em cirurgia, em que as coisas não poderiam correr melhor. Não há quem não lhe augure um futuro radioso numa carreira em que o dizem fadado para número um. Não me admiro nada com isso, se me lembrar do jovem que ele era, obcecado com a aprendizagem e o acréscimo dos saberes e manifestamente obstinado sempre que se tratava de atingir algo que desejasse. Só espero que este meu filho adorado seja capaz de conciliar as obrigações de uma vida profissional absorvente com as delícias do papel de pai e, para ser sincera, assusta-me um pouco que ele não esteja à altura de uma prova tão difícil. De bom tem o facto de falar muito com o pai e comigo e, apesar de todo o garbo que lhe vejo crescer no semblante, à medida que os pequenos sucessos o vão apontando como um ás do futuro, vá lá, consegue manter a humildade para escutar os reparos do pai quanto à importância de contribuir para uma vida familiar harmoniosa e de preferência também melada.
 Há um bando de pintassilgos que anda por aí, de acordo com o Manuel, por causa da abundância de cardos que o Verão traz à colina do cemitério que nunca deixou de estar inculta até às margens da represa. Alguns deles devem ter pousado nas ramagens do quintal que a canícula mantém silenciosas. Ouço agora uma verdadeira desgarrada entre dois deles.
Maravilha de fim de tarde, são os pequenos ornamentos da felicidade.

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