Alfinetes
Tenho escrito sobre centenas de plantas logo que elas me
apaixonam ou despertam a minha sensibilidade. Para aquelas que conheço de
“ginjeira” e trato por “tu”, a tarefa não tem apresentado dificuldades de
maior. Os problemas surgem quando aparecem plantas que me espicaçam, que me
desafiam, que por radiestesia própria me evidenciam validade, mas que eu,
humilde amador de botânica, não vislumbro ponta por onde lhe pegar. A história
que vou contar tem anos e só agora consegui dar-lhe seguimento.
Amigos muito chegados convidam-me assiduamente para ir, no
mês de junho, à Festa da Cereja em Alcongosta (Fundão), na encosta sul da Serra
da Gardunha. Escusado será dizer que quase todos os anos é um fartote (ver a Cerejeira no livro “As Plantas Nossas Irmãs”) em que a figura central é o afamado fruto
redondo e vermelhinho e a sua cada vez maior aplicabilidade gastronómica. Ora
num dos acessos ao centro histórico da pitoresca aldeia, ano após ano, encontro
sempre num escarpado muro, ramalhetes de flores escarlates que me cumprimentam
e tentam “conversar” comigo. Por princípio, não falo com “desconhecidas” para
não lhes dar confiança, mas desta vez, decidi-me a aprofundar o relacionamento.
Colhi um raminho e procurei na minha já vasta biblioteca algo que me proporcionasse
a identificação de tão simpática flor. Trabalho árduo mas que deu resultados,
como vamos ver.
A planta em questão é de boas famílias. Trata-se de uma
valerianácea que dá pelo nome de Centranthus
ruber. De facto, eu já conhecia uma sua irmã, de flores brancas, que abunda
na Arrábida, a Centranthus calcitrape,
que de resto, vem até mencionada no livro “Flores da Arrábida” do saudoso José
Gomes Pedro. Contudo, jamais tinha visto espécies de “calcitrapas” tão vistosas
como aquelas da Gardunha.
Identifiquei-a pela primeira vez num livrinho que a minha
esposa me deu de presente quando esteve em Praga e que, embora redigido em
língua checa, possui fotografias soberbas com os respetivos nomes científicos.
A partir daí, confirmei-a em “Plantas Medicinales” e “Plantas del Mediterráneo”
de Dieter Podlech, em “Wilde Bloemen” (flores silvestres, para quem não sabe
holandês) e em “Ornamental Plants of Malta” que adquiri há alguns anos quando
visitei essa ilha mediterrânica. Referências em português, só as achei no
opúsculo “Nomes Vulgares de Algumas Infestantes e Respetivo Nome Botânico” de
Fátima Rocha, publicado em 1979 pela Divisão de Infestantes da Direção Geral de
Proteção Agrícola, onde é apresentada com as designações populares “Alfinetes”
ou “Cuidado-dos-homens” (que raio de nome!). Aqui os espanhóis foram mais felizes,
chamam-lhe “Milamores” e os anglo-saxónicos, também muito amorosos,
“kiss-me-quick”.
A Centranthus ruber
é uma ruderal, oriunda da europa meridional e ocidental, que medra em muros e
escombreiras nitrificadas. Tem caule cilíndrico, ereto e ramificado que logra
atingir 1 metro de altura, mas que é frágil, partindo-se com facilidade. As
folhas são glabras (verde azuladas), brilhantes, carnosas, irregularmente
dentadas e opostas em que apenas as basais são pecioladas. Apresentam-se de
forma oval ou lanceolada com nervuras bem definidas, terminando em ponta. As
flores, de vermelho vivo, são hermafroditas (na mesma unidade coexistem órgãos
masculinos e femininos), formando densas e deslumbrantes umbelas. O fruto tem a
forma de aquénio e as sementes contêm tufos, à semelhança do dente-de-leão, que
se dispersam através do vento. Gosta dos solos alcalinos e de zonas soalheiras,
resistindo bem ao frio, a moléstias e ataques de insetos predadores. As flores
são atrativas para abelhas, diversas espécies de borboletas e outros
polinizadores.
A beleza e versatilidade desta valerianácea tornou-a muito
apreciada e valorizada como planta de jardim, acabando por se naturalizar em
várias partes do mundo. Na província do Cabo (África do Sul) é mesmo
considerada uma espécie invasora.
Dizem os livros consultados que a referida planta integra
interessantes substâncias ativas à semelhança do que acontece com a sua irmã
valeriana, de onde se extraem elementos para os remédios contra o nervosismo. A
casca do rizoma concentra substâncias com ação sedativa e as folhas têm
propriedades antiescorbúticas e antinevrálgicas.
Curiosamente, e a despeito do sabor amargo, as suas folhas
são referenciadas como comestíveis, quer cruas, em saladas mistas, quer
cozinhadas em sopas de vegetais. Na província da Ligúria (Itália) são uma das
componentes da célebre sopa de ervas denominada preboggion. Esta sopa típica, usada especialmente na época
da quaresma, é confecionada com as folhas jovens e tenras de diversas plantas
silvestres, como a borragem, a serralha, a acelga, o almeirão, o dente-de-leão,
a urtiga, a pimpinela, a silene e a leituga, entre outras. A estas ervas
junta-se ainda salva, alecrim, alho, azeite, queijo ralado e batata. Dizem que
as características organoléticas deste pitéu são inolvidáveis. Ainda um dia
havemos de experimentar!
Miguel Boieiro
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